Por Antônio Campos – Escritor, advogado, membro da Academia Pernambucana de Letras e Presidente da Fundação Joaquim Nabuco.
Um marco referencial da poesia de Lucila Nogueira Se me fosse dada a oportunidade de escolher o mais belo poema de Lucila Nogueira para uma antologia de ouro de poetas máximos de sua geração, não só de Pernambuco, eu não teria dúvida em colocar no primeiro lugar o soneto Se inda houver amor, aquele que iria coroar, num momento de genial criatividade, a sua brilhante carreira de poetisa, ensaísta no campo da crítica literária, tradutora, editora e contista, além de professora de literatura brasileira, portuguesa, africana, hispano-americana, curadora comigo, durante três anos, da Fliporto, minha colega da Academia Pernambucana de Letras.
Se tudo o que foi escrito e falado sobre o legado intelectual de Lucila for perdido com o passar do tempo, o que seria uma imensa perda, e sobrasse apenas esse poema, bastaria para imortaliza-la. É desses para serem gravados com lâminas de fogo nas rotas claras da eternidade. Ele diz tudo sobre o amor doação, dádiva, nesse poema, autora que sempre se interessou pela confluência do literário com a exegese do fenômeno poético, o que o leitor de qualquer época precisa saber para distinguir os seus vínculos com a vitalidade. Esse soneto é de supremo valor estético, inventivo, inspirador, singular, de uma beleza comovente, legitimado por um sentimento de paixão sem o medo do finito, dos desenganos.
Do princípio ao fim, o amor em Lucila Nogueira é envolvido de novo começo, em que se desvela a necessidade do outro. Soneto que se dirá inesquecível. Ninguém que viva a travessia das horas da paixão, seres em busca de alento, que acompanham o traçado espectral da época moderna, em que pouco se fala de amor, esquecerá a lição de clareza desse poema.
Foi dito que para Mauro Mota entrar na Academia Brasileira de Letras, bastaria a sua Elegia número 10, uma das mais belas, comoventes elegias da literatura de expressão portuguesa. Eu diria que, para conquistar leitores não só do nosso idioma, como amostra do gênio criativo da nossa melhor literatura, eu não exagero em dar por ensejo o soneto de Lucila, cujo fio condutor, nesta era pós-utópica, é a expectativa de que se faz preparação para acolher o esperado no interregno purificador da sua vacância, a eternização do amor que já vem de Santo Agostinho.
O soneto, que ora transcrevo, para melhor ilustrar esta crônica, tem algo de sonho, sem escapar à vigilância racional. Cada verso tem o poder de transfigurar as inquietações pessoais em meditação. Fala do amor e do infinito querer bem, capaz de mover a própria terra, o último ideal que nos resta, a primeira e urgente necessidade básica em nossa hierarquia. Poema de uma beleza construída por significados, pela força de metáforas e profundo sentimento humano, marco referencial do imenso legado poético de Lucila Nogueira.
Se inda houver amor
Lucila Nogueira
Se inda houver amor eu me apresento.
E me entrego ao princípio do oceano.
E se me atinge a onda, úmida eu tremo
esquecida de insones desenganos.E se inda houver amor eu me arrebento
feliz, atravessada de esperança
e mesmo lacerada inda assim tento
quebrar com meu amor todas as lanças.
E me entrego ao princípio do oceano.
E se me atinge a onda, úmida eu tremo
esquecida de insones desenganos.E se inda houver amor eu me arrebento
feliz, atravessada de esperança
e mesmo lacerada inda assim tento
quebrar com meu amor todas as lanças.
E se inda houver amor terei alento
para aguentar o inútil desses anos
e não me matarei, sonhando com o tempo
em que me afogarei no seu encanto.
e se inda houver amor, ah, me consente
ser pasto de tua chama, astro medonho.
E se inda houver amor, eu simplesmente
apago esta ferida do meu sono.
((())) Há exatos 5 anos da morte de Lucila Nogueira esse poema, todo ordenado por simetria e de perfeita construção, é um suporte memorável da imortalidade de sua autora.