Enquanto o povo sente fome, o governo anuncia a destruição de ovos — justo no auge da carestia. Coincidência ou distração planejada?
Por Flávio Chaves – Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras. Foi Delegado Federal/Minc – Nas últimas semanas, o Brasil se deparou com uma série de notícias que, à primeira vista, parecem tratar de assuntos distintos: de um lado, a disparada no preço dos ovos, um dos alimentos mais populares da mesa do brasileiro; de outro, a ação do Ministério da Agricultura anunciando o rastreamento e o descarte de milhares de ovos por conta da confirmação de um foco de gripe aviária em uma granja do sul do país. Para o olhar mais apressado, trata-se de uma coincidência infeliz. Para o olhar mais crítico, porém, talvez haja mais conexões do que aparenta.
O ovo, que sempre foi o alimento do povo, da merenda escolar ao PF dos botequins, tornou-se nos últimos meses um símbolo da crise alimentar silenciosa que afeta a classe média baixa e os mais pobres. O preço da dúzia subiu, escancarando a inflação dos itens básicos enquanto o discurso oficial permanece centrado em índices técnicos e gráficos abstratos. Enquanto isso, o povo sente no bolso e no estômago o que os números tentam suavizar.
É neste cenário que explode, de forma quase cinematográfica, o anúncio de que o governo está “rastreiando” e “destruindo” ovos para conter um surto de gripe aviária. O timing é, no mínimo, curioso. Quando as panelas vazias começam a ecoar nas redes sociais, quando os memes sobre o preço do ovo viralizam com mais força do que as próprias notícias econômicas, emerge a figura da autoridade sanitária, pronta para apresentar um novo enredo: não é a inflação — é a emergência sanitária.
A destruição de alimentos em nome da segurança biológica é prática prevista e, em muitos casos, necessária. O que causa estranhamento, porém, é a forma e o momento da divulgação. Os ovos, ainda em incubação, foram descartados em diferentes estados. O episódio foi amplamente noticiado, como se fosse necessário não apenas conter o vírus, mas também conter algo mais difuso: o desgaste público diante do encarecimento da alimentação. A gripe aviária, que de fato preocupa, surge assim também como narrativa paralela — uma espécie de véu técnico a encobrir o que poderia se tornar insustentável do ponto de vista político.
Não se trata aqui de afirmar teorias conspiratórias, mas de sugerir o que qualquer jornalista atento precisa: perguntas incômodas. Seria apenas coincidência que o governo anuncie a destruição de ovos justamente quando o seu preço se torna um escândalo cotidiano? Por que tanto esforço midiático em mostrar o descarte, e tão pouco em explicar os aumentos de preços e o impacto real na vida das famílias?
Quando se destrói alimento em um país em que ainda há fome, quando se gasta mais com a justificativa do controle do que com políticas públicas de acesso à comida, algo parece fora de lugar. O combate à gripe aviária é fundamental, mas não pode se tornar cortina de fumaça para esconder a carestia que aperta o povo nas feiras, nos supermercados e nas quitandas de bairro.
Mais do que rastrear ovos, é preciso rastrear responsabilidades. Porque, no fim das contas, o que está em jogo não é apenas a sanidade das aves — é a dignidade do prato brasileiro. E isso, definitivamente, não se esconde sob nenhuma epidemia.