Por Flávio Chaves – Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras. Foi Delegado Federal/Minc
O Recife é uma cidade que carrega beleza e tragédia em suas águas. Quando as chuvas torrenciais caem, é como se um deus vingativo despejasse seu rancor sobre essa terra anfíbia. As ruas se tornam rios, os carros flutuam sem rumo, e os homens e mulheres, presos em suas casas ou ilhados no meio da cidade, esperam, impotentes, que as águas decidam seu destino. A cidade para, o tempo se suspende, e a esperança escorre junto com a enxurrada.
Os mais pobres, que vivem nos morros e nas áreas de risco, carregam no rosto a marca da desesperança e da negligência. A cada novo temporal, suas casas se tornam armadilhas mortais. Nas madrugadas, ninguém dorme. O medo pesa sobre os telhados frágeis como uma lâmina afiada. Eles esperam o desabamento como quem espera a própria sentença. As gestões públicas se revezam no poder, mas nenhuma delas ousa enfrentar essa dor aquática com verdadeira determinação. O Recife se inunda de promessas vazias, de discursos bem ensaiados, enquanto sua gente afunda, afoga-se na lama de uma indiferença que se repete ano após ano.
E então, mais uma vez, a APAC anuncia chuva. A cidade treme. O alerta não é só climático, é existencial. Da janela, vejo um homem magro, de pouca roupa, atravessando a rua como um rio andante, um espectro carregando seu próprio sofrimento. A chuva em seu rosto disfarça as lágrimas, mas seus olhos caídos denunciam o peso da dor. Chamo-o para a calçada, entrego-lhe um guarda-chuva antigo, um pedaço de dignidade em meio ao caos. Ele segue, sem destino, sem voz, sem vida. Meu coração dói. A cidade geme sob as gotas incessantes. Deus, dai uma rua coberta para o povo sem teto.
Recolho-me à biblioteca, buscando um livro que me ensine a encontrar o sol. Porque viver, aprendi, tem como segredo amparar o outro, segurar sua mão quando o chão desaparece. Salvar sonhos é salvar vidas. Mas o Recife, com sua indiferença crônica, parece anestesiado diante da dor. Suas ruas, seus becos, suas praças cantam desafinadamente o medo da chuva, enquanto seus governantes assistem, distantes, a mais uma tragédia anunciada.
O relógio marca a hora do aviso. O céu continua sem estrelas, encharcado de prantos. E o que nos resta? Talvez cantar, de mãos dadas com os desabrigados, “O meu mundo caiu”, na esperança de que, quando nossa voz ecoar forte o bastante, os gestores do medo finalmente tremerão diante daqueles que ousam resistir.