“Quando o Direito Penal chegou ao andar de cima, todos ficaram garantistas”, diz Barroso

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Barroso quer recriar a prisão após segunda instância

Márcio Chaer, Maurício Cardoso e Danilo Vital
Site Conjur

Na visão do ministro Luís Roberto Barroso, o Brasil padece de uma realidade perversa. Tem um sistema de Justiça ineficiente e que, de maneira geral, é feito para prender menino pobre. Enquanto funcionou assim, não houve problema. Mas os escândalos do Mensalão e a Lava Jato mudaram o paradigma. O Direito Penal chegou ao andar de cima, aquele dos ricos e poderosos, o que gerou uma reação garantista que rapidamente se espalhou. “Quando o Direito Penal chegou ao andar de cima todo mundo ficou garantista”, aponta.

Barroso usa a execução da pena após condenação em segundo grau como exemplo. Até 2009, era aceita sem contestação. Na esteira dos julgamentos do mensalão, mudou-se a jurisprudência para aguardar pelo trânsito em julgado.

DEBATE PASSIONAL – A Lava Jato e a prisão do ex-presidente Lula desequilibraram de vez o jogo, e o debate passou a ser passional. Os 11 integrantes do STF ganharam de vez os holofotes. Os efeitos, nas palavras do ministro, são deletérios.

“Quais são as decisões do Supremo que eu acho que, em tese, poderiam tipificar como ativismo? São poucas, e embora elas sejam divisivas da sociedade, elas não provocam choro e ranger de dentes como as decisões criminais”, aponta.

Por isso, critica o que chama de “garantismo à brasileira”: aquele que entende que o processo não pode acabar até que se atinja a prescrição, e se isso não ocorrer, tudo deve ser anulado.

O Supremo, assim como a sociedade brasileira, vem passando por transformações vertiginosas. O que é que falta para a Corte dedicar-se primordialmente aos temas centrais de Estado?
O Supremo deve se dedicar às duas grandes missões de uma corte constitucional: proteger direitos fundamentais e proteger a democracia, que inclui essa mediação entre Poderes. Por uma falha de desenho institucional, o Supremo tem uma competência criminal muito vasta que nenhuma corte constitucional no mundo tem, que é a competência do foro privilegiado. Na medida do possível eu propus reduzir e a maior parte do plenário aquiesceu. Não tenho os números ainda, mas acho que reduziu talvez à metade o número de ações penais pelo critério que propus, de competência se o crime for cometido no cargo e em razão do cargo. E nós temos uma enorme quantidade de Habeas Corpus. Dia desses um dos casos era saber se ter matado alguém no bar, na disputa pelo jogo de sinuca, era motivo torpe ou não era. É uma competência completamente absurda.

E a tensão entre os Poderes?
Houve um momento em 2017 que tinha mais de 500 processos no Supremo envolvendo parlamentares, entre inquéritos e ações penais. É claro que isso cria uma tensão entre Poderes. Quando você tem o poder de julgar alguém, ainda mais em matéria penal, há uma tensão inerente ao desempenho dessa função. Era ruim para o Supremo, ruim para o Legislativo, ruim para as instituições.

Como tem funcionado o sistema penal brasileiro?
Perversamente. Porque o sistema de uma maneira geral é feito para prender menino pobre. Este é um dado da realidade. E quando ele funcionava assim, ninguém dava muita bola. Quando o Direito Penal chega ao andar de cima, depois dos fatos do mensalão, em 2009, o Supremo passa a entender que só pode executar depois do trânsito em julgado. Veja a evolução: antes podia executar depois do primeiro grau, depois podia executar após o segundo. A partir de um determinado momento, o Direito Penal começa a respingar no andar de cima, e aí vem a mudança de jurisprudência em 2009 para dizer que só pode depois do trânsito em julgado. Os resultados foram deletérios.

Aí prejudicou-se a discussão e garantiu-se a impunidade…
Eu acho que o sistema que não permite condenar depois do segundo grau se torna infindável, e você dá os estímulos errados às pessoas. É claro que a Justiça Penal é o espaço mais suscetível de abuso, e, portanto, é preciso estar atento e forte, porque ali podem acontecer coisas erradas. O papel da advocacia e do Judiciário é evitar que isso aconteça. Porém, o sistema tem que funcionar. Eu me considero — e alguns poderão não considerar, porque as palavras perderam um pouco de sentido — totalmente garantista.

O réu tem direito de saber do que é acusado, de se defender, de produzir provas, de ser julgado por um juiz imparcial e ter um recurso pelo menos em que possa rediscutir os fatos. Considero que isso é garantismo. Há um garantismo à brasileira que entende que o processo não pode acabar e que tudo deve terminar em prescrição, e que se por acaso não prescrever você deve anular tudo.

Mas as regras do jogo teriam de ser mudadas então. Essa reforma do sistema penal está mais na mão do Legislativo do que do Judiciário.
Lá e cá. Eu tenho uma trilogia: o Direito Penal deve ser moderado, sério e igualitário. Moderado significa sem excesso de tipificações e sem desmedida exacerbação de penas. Sério significa que ele tem que ser aplicado de modo a produzir o seu grande efeito, que é o de prevenção geral, que evita o crime. E igualitário, que é a coisa mais difícil no Brasil: é você não distinguir entre rico, remediado ou pobre. O que está certo, está certo; o que está errado, está errado. Essa é a parte mais difícil no Brasil. Somos assim um pouco pela herança da escravidão, um pouco pelo modelo aristocrático e plutocrático.

De impunidade garantida…
Vou usar uma expressão do professor Oscar Vilhena Vieira: “há os que são imunes de tão ricos, e os que são invisíveis de tão pobres”. Uns estão acima da lei e outros, abaixo. A gente tem que ter um sistema igualitário. Não tem juiz de esquerda ou de direita. O juiz tem que fazer o que é certo, justo e legítimo. Você está falando com um juiz que não desviou nem de Aécio, de Temer, de Lula, de Bolsonaro quando chegou a minha vez de fazer o que eu achava que devia fazer. Sem fulanizar — vou falar em tese —, achacar empresário não é legítimo, levar propina não é legítimo. Se houve condenação em segundo grau não pode registrar a candidatura, se ofendeu as pessoas deve responder por isso, e, portanto, este componente igualitário é muito difícil no Brasil, e às vezes é um percurso muito solitário seguir esse caminho.

Ministro, pode-se deduzir que o Brasil precisa de uma lei rigorosa contra o abuso de autoridade?
A gente precisa reagir com um Direito Penal eficiente no enfrentamento das grandes questões criminais da atualidade. Eu diria que os grandes problemas que o Brasil enfrenta são a criminalidade comum — essa que nos assusta na rua, do roubo, do estupro —, a criminalidade organizada — das facções criminosas e das milícias — e a criminalidade institucionalizada, que é a corrupção. Eu não identificaria neste momento da vida brasileira o abuso de autoridade como sendo o grande problema do domínio penal. Sou contra abuso em qualquer circunstância. Acho que já havia legislação para reprimir isso, mas repito: quando o Direito Penal chegou ao andar de cima todo mundo ficou garantista.