Por Jan Niklas

RIO – No conto “A biblioteca de Babel” o escritor Jorge Luis Borges imagina uma biblioteca infindável, composta por todos os livros possíveis de serem escritos com as configurações do alfabeto. Esse universo infinito, descrito à mão pelo autor argentino, coube em apenas nove páginas de um caderno de registros contábeis do qual só há um único manuscrito conhecido. Com a caligrafia ao mesmo tempo estranha e elegante de Borges, esse rascunho é uma das preciosidades da coleção de Pedro Corrêa do Lago, que estrelaram uma exposição na Morgan Library & Museum, em Nova York, e agora estão reunidas no livro “A magia do manuscrito” (Taschen).

A edição em português do livro A magia do manuscrito, que reúne autógrafos e textos escritos à mão de personalidades como Einstein e Mozart Foto: reprodução
A edição em português do livro A magia do manuscrito, que reúne autógrafos e textos escritos à mão de personalidades como Einstein e Mozart Foto: reprodução

Obviamente, a coleção de documentos como cartas, desenhos, fotografias assinadas e partiras reunidas por Lago ao longo de quase meio século não beira o infinito, como a biblioteca borgeana. Ainda sim, os números impressionam: são pelo menos 35 mil peças internacionais e um número ainda maior em acervo luso-brasileiro que formam a maior coleção particular de manuscritos do mundo. Para a exposição — que em junho será apresentada no Sesc Vila Mariana, em São Paulo — e o livro, o colecionador selecionou 140 peças que estão reproduzidas com as respectivas traduções contextualizadas em breves textos.

A obra, que já foi lançada em alemão, inglês, francês, italiano e espanhol contempla as mais diversas áreas do conhecimento humano, como artes, história, ciência, literatura e música. No livro estão reproduções de peças que estiveram sob as penas e canetas de nomes como Michelangelo, Van Gogh, Mata Hari, Mozart, Freud, Picasso, Villa-Lobos, Malcom X e Frida Kahlo.

— Se você admira pessoas como Machado de Assis, Proust ou Gandhi e está segurando em suas mãos uma carta que eles escreveram, você está com uma parte do cérebro deles, de suas capacidades de redação — diz Lago, defendendo sua paixão, ou “obsessão”, como se refere em outros momentos.

Segundo o editor e colecionador, que começou ainda na infância a reunir autógrafos e documentos de personalidades de destaque, o que guiou a seleção presente no livro foi principalmente o conteúdo e a singularidade de cada exemplar. E não é preciso folhear muito a obra para encontrar documentos históricos.

Desenhos de Santos Dumont Foto: Agência O Globo
Desenhos de Santos Dumont Foto: Agência O Globo

Há, por exemplo, um apelo desesperado escrito da prisão pela espiã Mata Hari em 1917: “Estou muito doente, e o choque tem sido tão difícil para mim que não sou mais eu mesma”, diz um trecho da missiva endereçada ao governador militar de Paris. Em outro bilhete, o comandante do Exército britânico durante a Segunda Guerra Mundial, Bernard Montgomery, e o general americano Dwight Eisenhower, formalizam uma aposta sobre o fim do confronto. Eisenhower acabaria perdendo cinco libras ao apostar que a Alemanha seria derrotada antes do natal de 1944.

Um dos tesouros reproduzidos no livro é uma carta escrita por Vincent Van Gogh dois meses antes de seu suicídio, onde ele lista os móveis que imortalizou em sua pintura “O quarto de Arles”.

Garranchos de Napoleão

— A importância de uma carta não é sempre imediatamente perceptível. Essa do Van Gogh, por exemplo, comprei muito barata porque seu ponto principal não havia sido notado pelos antigos donos: ao descrever as peças, ele fez um inventário do quarto reproduzido na tela, que talvez seja o quarto mais famoso da história da pintura ocidental — destaca o colecionador.

Quem quiser fazer uma arqueologia de textos literários poderá encontrar rascunhos com correções e sugestões de próprio punho de grandes escritores. Na obra, há trechos do manuscrito do conto “O escrivão Coimbra”, de Machado de Assis, com rasuras, revisões e a assinatura do autor. Também está lá o manuscrito do parágrafo de abertura de “Em busca do tempo perdido”, de Marcel Proust, que guarda diferenças para a versão final publicada em 1913.

Outros itens, à primeira vista mais comezinhos, podem revelar particularidades curiosas. Como um recibo de Sigmund Freud, datado de 1934, cobrando 2mil xelins por vinte horas de sessões de análise. Em outra carta, ele envia seis dólares de presente para o aniversário de 94 anos de sua mãe. No livro, o leitor também poderá descobrir diferentes caligrafias, como por exemplo os garranchos de Napoleão, classificados como “hieróglifos” por um oficial da marinha francesa.

— Outra curiosidade são formulários biográficos respondidos por nomes como James Joyce, que escreveu no campo “Atual posição” do documento o seguinte: “Professor da Escola Superior de Comércio de Trieste e escritor” — conta Lago, rindo pelo fato de o autor de “Ulisses” deixar seu lado mais conhecido em segundo plano no questionário. — Ou então Hemingway, que no campo “lazer” responde: “esquiar, pescar, atirar, beber”.

Em “A biblioteca de Babel”, Borges escreve que se um eterno viajante atravessasse a biblioteca em qualquer direção “comprovaria ao fim dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem”. Tal sensação acontece ao folhear os tesouros compilados no livro pelo colecionador: não há qualquer hierarquia histórica ou linha do tempo na disposição dos manuscritos. O que a obra permite é um breve mergulho em registros únicos de grandes mentes que moldaram o saber ocidental.

— É um livro para você frequentar ao sabor do momento — observa Lago.

O GLOBO