Capitu traiu? Livro conta origem da polêmica mais famosa da literatura brasileira

Michel Melamed e Maria Fernanda Cândido em cena de 'Capitu', de Luiz Fernando CarvalhoMichel Melamed e Maria Fernanda Cândido em cena de ‘Capitu’, de Luiz Fernando Carvalho — Foto: Divulgação

Por Bolívar Torres – O Globo

“Durante 61 anos, Capitu pôde trair em paz.” Como lembra o poeta e imortal da Academia Brasileira de Letras Antonio Carlos Secchin no texto de abertura de seu “Papéis de prosa — Machado & mais” (Unesp), que será lançado nesta quinta-feira (16), às 19h, na Travessa do Leblon, no Rio, a dúvida sobre o — suposto? — adultério em “Dom Casmurro” (1899) não apenas demorou para se difundir como ainda se iniciou em outro país, graças à sagacidade da crítica americana Helen Caldwell (1904-1987).

Depois disso, a polêmica nunca mais deixou as páginas, reais e virtuais. Aparece de forma recorrente entre os assuntos mais comentados do Twitter. Hashtags como “não traiu” (para defender Capitu) e outras como “boy lixo” (para atacar Bentinho) mobilizam adolescentes recém-iniciados no universo machadiano. Mas, não fosse o ensaio “The brazilian Othello of Machado de Assis”, publicado por Caldwell em 1960, a maior treta da nossa literatura talvez nunca existisse.

— Caldwell causou uma reviravolta na literatura brasileira ao tratar a narração do próprio Bentinho, em primeira pessoa, como não confiável — lembra Secchin. — Ela trouxe a ideia de que Capitu poderia ser apenas uma vítima da insegurança do marido. Quando “Dom Casmurro” foi lançado, o leitor imbuído do realismo da época ansiava por clareza. Talvez por isso a ambiguidade de Machado tenha passado batida.

Houve, porém, uma exceção. Enquanto predominava a “aceitação tácita” do adultério, o crítico José Verissimo enxergou uma brecha. “Dom Casmurro descreve [Capitu] com amor e com ódio, o que pode torná-lo suspeito”, escreveu o crítico em 1900. Mas seu pioneirismo não repercutiu.

— Verissimo foi o único que insinuou essa malícia — diz Secchin. — Por outro lado, ninguém garante o que o próprio Machado pensava sobre o assunto. A leitura é sempre uma construção do leitor. Ele descobre coisas que nem o autor desconfia.

Intrigas literárias

“Papéis de prosa”, que será lançado juntamente com outro conjunto de ensaios do autor (“Papéis de poesia II”), também traz textos sobre Euclides da Cunha, Rubem Braga e Semana de 22. O Bruxo do Cosme Velho, porém, ocupa a maior parte do livro, no qual Secchin aborda outra “fofoca” literária que volta e meia viraliza: a relação de Machado com o poeta Mario de Alencar, filho de seu grande amigo (e também clássico autor brasileiro) José de Alencar.

Após a morte deste último, o Bruxo do Cosme Velho apegou-se ao então jovem Mario e o colocou sob a sua asa. Foi, inclusive, o principal fiador da surpreendente eleição do poeta iniciante — e de magro currículo — para a ABL. Recentemente, perfis no TikTok dedicados a fofocas literárias resgataram um velho rumor de que Machado seria o verdadeiro pai biológico de Mario.

De acordo com Secchin, nenhuma evidência histórica sustenta a teoria. Por outro lado, não há dúvidas de Machado teve dois filhos “simbólicos” dentro da Academia. Além de Mario de Alencar, o escritor protegeu e guiou o também escritor Magalhães de Azeredo. Por coincidência, todos os integrantes deste “consórcio triplo de almas” carregam as mesmas iniciais: M. d A.

— O veneno sobre a paternidade de Mario foi espalhado por Humberto de Campos (1886-1934, eleito para a ABL em 1920), no diário que escreveu no fim da vida. Em determinado momento, descreve a conversa de dois acadêmicos sobre a semelhança física entre Machado e Mario. — conta Secchin. — Mais tarde, para reforçar o veneno, acrescentaram que ambos eram epiléticos. Mas o argumento se destrói facilmente, já que epilepsia não é hereditária. E quem me passou essa informação foi o (acadêmico e escritor, morto em 2011) Moacyr Scliar, que também era médico. A fonte é confiável.