Que polarização?

Por Sérgio Abranches

A polarização política não é sempre ruim para a democracia. Há situações de polarização que equilibram a democracia. Quando a polarização gera impasse e paralisia, ou quando se radicaliza e é dominada por dois polos extremistas, passa a ter carga negativa e tende à ruptura democráticas. A estagnação compromete o equilíbrio dinâmico da polarização democrática entre esquerda e direita, por exemplo, e leva a um realinhamento partidário, ou à ruptura institucional. Realinhamentos partidários surgem a superação das clivagens sociais ou culturais que determinavam a divisão da sociedade em dois blocos políticos diferenciados em seus valores, preferências e princípios de políticas públicas. Novas clivagens, derivadas de mudanças na sociedade, quando maduras o suficiente podem servir de base a uma nova configuração política. O sistema partidário tende a mudar nesta nova direção e Benta cria uma nova polaridade para organizar governo e oposição. Se, porém, as divisões forem marcadas por sentimentos confusos ainda, de desconforto e raiva com o estado da sociedade, o esgotamento das opções partidárias pode levar a uma ruptura com sérios riscos para a democracia.

A queda da República de Weimar é um exemplo claro desta trajetória disruptiva. O voto indignado, provocado pelo descontentamento com o statu quo, de motivações difusas e fragmentadas agregou-se momentaneamente em uma opção aparentemente nova e renovadora. A Alemanha saía da hiperinflação, associada ao enorme sacrifício de pagamento de reparações da Primeira Guerra, imposto pelas forças vitoriosas. Empobrecida e humilhada, encontrou na ira nacionalista de Hitler um caminho de mudança. Sacrificou a democracia no altar do ressentimento.

Nos Estados Unidos, em pelo menos cinco momentos diferentes de sua história, o realinhamento partidário permitiu a manutenção das regras do jogo e do bipartidarismo, em resposta à mudança das clivagens, das raízes dos conflitos sociais. Um desses momentos se deu na onda das mudanças nos anos 1920, que levaram ao crash da Bolsa, em 1929, e ao New Deal. O partido Republicano, até então beneficiário majoritário do voto negro, não acompanhou as mudanças nas demandas dos negros, recusando-se a avançar na pauta dos direitos civis. Ao mesmo tempo, os Democratas no Norte do país, defendiam e aprovavam novas oportunidades para a incorporação econômica e social dos afro-americanos. A clivagem racial permanecia determinando o voto negro, porém seus fundamentos mudavam. Antes, fora escravismo vs abolicionismo, até a guerra civil. Após a abolição, o racismo se tornou o principal vetor da clivagem política no plano racial. O partido Democrata no Sul era racista, e os Republicanos, nem tanto. A partir dos anos 1930, os negros migraram para o partido Democrata, que apoiava a rede de proteção social do New Deal, oposta pelos Republicanos. A migração do voto negro do partido Republicano para o Democrata mudou radicalmente a composição e o comportamento dos dois partidos.

No caso alemão, a polarização levou à estagnação e a ruptura, ao totalitarismo. No caso americano, o sistema passou de um equilíbrio dinâmico a outro, preservando o jogo democrático e o bipartidarismo. Num caso, a polarização foi disfuncional e levou à ruptura democrática. No outro, foi funcional ao admitir mudança política que absorvesse as novas clivagens da sociedade, mantendo a democracia.

A polarização disfuncional é aquela que promove polos extremos, radicalizados. A polarização extremada gera fuga forçada do centro para os extremos. A polarização democrática incentiva o deslocamento dos polos rumo ao centro, abrandando suas preferências mais radicais. Uma é centrífuga, a outra, centrípeta.No Brasil, a polarização PT vs PSDB foi funcional, organizando governo e oposição e forçando os dois partidos a buscar posições mais centrais. De um lado, o PT teve que admitir a agenda de responsabilidade fiscal e a se aliar a partidos de centro. Do outro lado, o PSDB foi desincentivado a mover-se demais para a direita, a ponto de abandonar suas pautas sociais.

A Bolívia, hoje, está diante desses dois caminhos. O lançamento da candidatura de Fernando Camacho à presidência pode levar a uma polarização extremada entre a extrema direita e os setores mais radicais do partido de Evo Morales, MAS. O mais provável, neste caso, será o conflito violento e o autoritarismo. Carlos Mesa, candidato de de centro-direita, pode evitar a opção extremista. Se a polarização se der entre ele e a ala moderada do MAS, ou mesmo entre ele e Camacho, o processo político pode levar à restauração da democracia. A tendência seria os simpatizantes do MAS migrarem para Mesa, se o seu candidato não conseguir apoio. No Chile, a polarização esquerda-direita mantém-se funcional, apesar do deslocamento para a direita da Democracia Cristã, tradicional aliada dos socialistas. Há consenso de que as grandes escolhas se constituinte exclusiva ou mista, ficarão para o plebiscito. Há divergências apenas sobre procedimentos. O presidente Piñera mantém uma atitude ambivalente, pedindo mais repressão, enquanto apoia o processo constituinte.

O Brasil pode se ver numa encruzilhada entre a polarização extremada e a polarização democrática. O PSDB deslocou-se para a direita e deixou o centro vazio. Tem em seus quadros alguns dos principais viabilizadores do governo Bolsonaro. A disposição de Bolsonaro é claramente pela radicalização extremada, buscando empurrar o PT para o outro extremo. As milícias digitais hidrofóbicas do presidente, orientadas por pessoas muito próximas dele, não deixam dúvida de que o objetivo é eliminar do jogo político todos os que são vistos como do “outro lado”. Um lado que não contém só PT, mas todos os que são identifica como “globalistas”, do “comunistas”, e “terroristas”. O PT tem alas extremadas que inspiram milícias digitais muito raivosas, a ofender e desqualificar setores democráticos e, inclusive progressistas, que opuseram aos seus governos. Desde o final da eleição de 2014, a polarização no Brasil tendeu ao extremismo. O ápice foi em 2018, que rompeu o ciclo de polarização democrática que formou governo e oposição até então.

A democracia estará sob risco se persistir a polarização extremada. Lula pode evitá-la, se entender que a clivagem central neste momento se dá entre democracia e autoritarismo. Ela pode evoluir para a polaridade civilização vs barbárie. O inimigo principal é o autoritarismo. O país está sendo empurrado para ele à sombra das instituições e da lei. Neste caso, todos os setores democratas, precisam cooperar, independentemente de suas divergências políticas.

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