Entre os tempos

A crônica da jornalista Miriam Leitão 

 Por Mirian Leitão

O que eu ouvi primeiro foi o silêncio. Isso me assustou. Queria gritos, mas quanto mais esticava os ouvidos para captar os sons da rua, mais temia a verdade.

Estava numa deliciosa tarde de autógrafos do meu novo livro infantil: As aventuras do tempo. Meu amigo Afonso Borges havia preparado uma festa de delicadezas. Já que a mensagem do livro é que criança deve brincar, ouvir histórias, curtir a relação com os avós, a festa era tudo isso. As crianças brincaram, ouviram histórias, escreveram cartas para os avós, no pátio interno do Museu do Brinquedo, em Belo Horizonte. A fila não parou. Perto das cinco, o tempo virou. A chuva veio fria e com vento. Presságio? Um aviso de que lavaríamos a nossa alma, ou de que nosso sonho iria por água abaixo? Corremos para dentro do Museu, a fila se reorganizou de alguma forma, serpenteando entre as prateleiras de brinquedos.

Olhei o relógio. Faltavam dez minutos para as cinco da tarde. Estava chegando o momento. Metade de mim se divertia com a algazarra do lançamento, a outra metade vigiava, atenta a qualquer sinal que viesse das ruas.

“Eran las cinco en punto de la tarde”, diz um poema de Garcia Lorca. O verso me veio à cabeça quando olhei o relógio. Eu abrigada no museu e na alegria do carinho de pequenos leitores, mas inquieta. Os minutos foram passando e lá fora era apenas silêncio. Vinte minutos, trinta minutos. E silêncio. Não podia pegar o celular para saber de notícias, seria rude com a fila de autógrafos. Mas aquele som nenhum só podia ser má notícia. Tomei coragem. Chamei minha irmã e perguntei baixinho:

– Quanto está o jogo?

– O River fez um gol.

Fiquei como o poema de Ferreira Gullar. “Metade de mim pesa, pondera, a outra metade delira.” Fotos, abraços, mensagens carinhosas escritas nos livros. Mas, uma parte de mim tentava imaginar os passes de Gabriel e Bruno Henrique. Como estaria a atuação do Arrascaeta? E Rafinha? Willian Airão? Repassei os jogadores correndo nos gramados de Lima. Imaginei a aflição de Diego Alves que vira uma bola entrar em sua cidadela, ameaçando o sonho tão longamente sonhado. Temi a Argentina.

O Museu fechava às seis, e um pouco antes acabou a tarde de autógrafos. Saí para a rua onde a água ainda descia. Levei livros que ganhei de leitores e alguns mimos do Museu em uma caixa. A ideia da instituição é que as crianças entendam como se brincava antigamente e estimulá-los a voltar a algumas clássicas brincadeiras. Pular corda, jogar peteca, andar de carrinho de rolimã. Quer também que os adultos se reencontrem com as crianças que foram um dia.

Mais cedo havia ido ao museu para dar entrevista. Tatiana, a diretora, me mostrou tudo e fez uma proposta inesperada. Andar de carrinho de rolimã na calçada da Afonso Pena. Eu? Será? Lembrei da rua Princesa Isabel, em Caratinga, e dos carrinhos dos meus irmãos. Eles exibindo destreza. Eu, tímida, desastrada. Juninho e Cláudio me chamavam, mas eu sempre alegava que tentaria outro dia. Só que os modelos que eles fabricavam foram ficando cada vez mais sofisticados, mais velozes, mais perigosos. Ana se atirava nos possantes como se não houvesse amanhã. Eu adiava minha estreia. Talvez amanhã, dizia.

Tantas décadas, achava que o assunto estivesse encerrado. Até aquela manhã. As meninas do Museu disseram que seria fácil, seguro. Todo mundo foi para a rua para me ver. E como dizer a elas que recusara todos os convites dos meus irmãos? Lá estava o carrinho, os celulares prontos para filmar, a avenida Afonso Pena e até um fotógrafo profissional com a sua câmera. E agora?

Era tarde para desistir daquele encontro com o destino. Sentei no carrinho, segurei o controle de mão e dei partida. Deslizei ladeira abaixo na calçada da avenida Afonso Pena. Uma delícia. Os anos vividos sumiram. Era criança de novo. Se fosse possível, queria que Juninho me visse naquele momento.

Isso foi de manhã, agora estava indo apressada para a casa da Beth. Sentei ao lado do meu sobrinho que via o jogo. Ele me deu a notícia de que o time não estava numa tarde brilhante. Esperei angustiantes minutos até aquele, quase final, em que pude dar o primeiro grito de gol. O segundo veio no susto, três minutos depois. Campeão! Campeão da Libertadores!

Contei do medo que tive do silêncio das ruas. Meu irmão Ulisses disse que eu não ouviria nada mesmo porque não estava no Rio e sim em Belo Horizonte. Respondi orgulhosa que os rubro negros são uma nação.

Meu irmão Cláudio me mandou, implicante como sempre, o link de uma startup que ensina a vencer o medo de andar de bicicleta. Chegou bem naquele momento. Mandei o vídeo do carrinho de rolimã com a mensagem: “Estou avançando”.

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