Uma forma diferente de homenagear as vítimas do Holocausto

PEDRAS DE TROPEÇO

As ‘pedras de tropeço’ ou ‘Stolpersteine’ são colocadas em frente à casa que foi a última residência de uma vítima do nazismo. Há 70 mil delas espalhadas por 1,2 mil cidades

Uma forma diferente de homenagear as vítimas do Holocausto
A ideia foi concebida pela primeira vez pelo artista Gunter Demnig, em Colônia, em 1992 (Foto: Wikimedia)
Numa tarde recente de inverno, muitos moradores de Duisburger Strasse, em Berlim, reuniram-se para celebrar as pessoas que moravam nas suas ruas e morreram no Holocausto. Para Volker Spitzenberger, que mora com o marido no local desde 2010, as histórias de moradores locais mortos pelos nazistas eram um lembrete das atrocidades cometidas no passado – mas não mais do que quando o organizador mencionou Manfred Hirsch, um menino que foi deportado aos quatro anos de idade da casa no nº 18.

“Essa é a nossa casa”, Spitzenberger disse, com uma mistura de espanto e tristeza. Monumentos de recordação são onipresentes em Berlim. A cidade tem pelo menos 20 memoriais dedicados às vítimas do Holocausto – mais notavelmente o enorme Memorial aos Judeus Assassinados da Europa, de Peter Eisenman, com 19 mil metros quadrados.

Mas o memorial em homenagem ao menino Hirsch é diferente. Com pouco menos de 10 centímetros quadrados, ele pode ser fácil de perder de vista: uma pequena pedra de bronze, embutida diretamente no chão, nos paralelepípedos da rua.

Conhecidas como “Stolpersteine”, ou “pedras de tropeço”, existem agora mais de 70 mil desses blocos espalhados em mais de 1,2 mil cidades e vilas na Europa e na Rússia. Cada um homenageia uma vítima do lado de fora da última casa em que a pessoa viveu, antes de ser capturada pelo nazismo.

As pedras representam uma nova visão de lembrança urbana. Se o grande monumento de Eisenman, situado no coração administrativo de Berlim, enfatiza a escala e a culpabilidade política do Holocausto, o foco da Stolpersteine é em suas tragédias individuais.

A inscrição em cada pedra começa “Aqui viveu”, seguida do nome da vítima, data de nascimento e destino – que pode ter sido internação, suicídio, exílio ou, na grande maioria dos casos, deportação e assassinato. Juntos, os blocos constituem o maior monumento descentralizado do mundo.

“Acho muito mais emocionante do que esses memoriais colossais ou labirínticos, que, para mim, parecem bastante bombásticos e anônimos. O Stolpersteine é muito mais vívido e pessoal”, diz Marion Papi, uma tradutora e escritora que também mora a poucas portas de Spitzenberger, na Duisburger Strasse.

A ideia foi concebida pela primeira vez pelo artista Gunter Demnig, em Colônia, em 1992, como parte de uma iniciativa em homenagem às vítimas romanichéis e sintis – dois povos ciganos – do Holocausto. Ele instalou o primeiro Stolperstein quatro anos depois.

Ele já colocou mais de 70 mil pedras, supervisionando pessoalmente o texto e a instalação de cada uma delas. A tarefa o mantém na estrada por 300 dias por ano.

“Uma pessoa só é esquecida quando o nome dele ou dela é esquecido”, costuma dizer Demnig, citando o Talmude, uma coleção de livros sagrados judeus. Hoje, o Stolpersteine existe em 20 idiomas e 24 países. Em 2017, a escola Pestalozzi, em Buenos Aires, tornou-se o primeiro local fora da Europa a abrigar uma, homenageando centenas de crianças judias alemãs que encontraram refúgio no exílio.

Ao contrário de alguns outros memoriais que se concentram em grupos perseguidos específicos, o Stolpersteine homenageia todas as vítimas do regime nazista, incluindo cidadãos judeus,  ciganos, deficientes, dissidentes e afro-alemães. Apesar de seu vasto âmbito internacional, o Stolpersteine continua sendo uma iniciativa de base. Grupos locais – muitas vezes moradores de uma determinada rua, ou crianças em idade escolar trabalhando em um projeto – se reúnem para pesquisar as biografias de vítimas locais e para arrecadar € 120 para instalar cada pedra.

Em um episódio polêmico, o Stolpersteine foi banido pelo conselho municipal de Munique em 2004. A decisão foi confirmada em 2015, apesar de mais de 100 mil pessoas terem assinado uma petição em favor do memorial em blocos. No verão passado, Munique apresentou um projeto de lembrança alternativo, também colocado diante do último domicílio da vítima, mas apresentando placas biográficas e fotografias em colunas de aço inoxidável.

Para Michael Friedrichs-Friedländer, de 69 anos, o artesão que faz cada Stolperstein, as críticas ao projeto são infundadas. “Não consigo pensar em uma forma melhor de lembrança. Se você quiser ler a pedra, você deve se curvar diante da vítima”, diz ele.

Em sua pequena garagem nos subúrbios do nordeste de Berlim, Friedrichs-Friedländer grava cada pedra a mão, letra por letra, com um martelo e selos de metal. Ele trabalha sozinho e em silêncio, seis dias e, pelo menos, 50 horas por semana. No total, ele deu forma a mais de 63 mil blocos.

Apesar de várias propostas para mecanizar o processo, Friedrichs-Friedländer insiste que ele permaneça manual. “Para mostrar respeito pelas vítimas, isso deve ser feito à mão. O Holocausto foi tão sistemático. O que eles inventaram como meio de abate em massa, foi mais ou menos automatizado. Nós não queremos nada disso”, diz ele durante uma breve pausa para fumar.

O trabalho pode ser devastador, como a vez em que ele inscreveu o 34º Stolpersteine para ser colocado do lado de fora de um antigo orfanato judeu em Hamburgo. Mas Friedrichs-Friedländer se sente compelido a continuar com o que vê como um imperativo moral e político, ainda mais diante de uma extrema direita em ascensão na Alemanha e em toda a Europa.”Eu me sinto responsável. Quando você conhece a história e vê o que está acontecendo hoje, há muitos paralelos”, diz Friedrichs-Friedländer.

The Guardian-‘Stumbling stones’: a different vision of Holocaust remembrance

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