Mauricio de Sousa alfabetizou mais e melhor que Paulo Freire

Mauricio de Sousa alfabetizou mais e melhor que Paulo Freire

Ademir Luiz

Se é verdade que o método Paulo Freire é uma ferramenta de doutrinação comunista, trata-se de uma ferramenta duplamente falha: nem alfabetiza direito, nem doutrina direito

Paulo Freire é o Santos Dumont da educação. Muita gente acredita que ele inventou uma máquina voadora, mas na verdade a geringonça só dava uns pulinhos. O curioso é que existe um movimento coletivo de negação do óbvio. Faça o teste. Chegue em uma festinha ou reunião de “educadores”, “intelectuais”, essa gente maravilhosa, do bem, super engajada, super preocupada com os rumos do País, e comente como quem não quer nada: “a educação brasileira vai mal, muito mal”. Provavelmente, todos vão concordar, lamentar, reclamar da falta de investimentos governamentais na educação e contar experiências pessoais com estudantes despreparados, analfabetos funcionais terminando o ensino médio ou mesmo a faculdade. Seja paciente, escute todos os relatos, todo o desfiar do rosário. Finalmente, quando todos estiverem satisfeitos por terem ouvido a própria voz falando sobre coisas importantes, fale à queima-roupa: “Concordo, acho que devemos mudar o método educacional, Paulo Freire não dá mais”. Resultado: gritos, choro, ranger de dentes! Alguns rasgarão as vestes e jogarão terra na cabeça!

Não se fala mal de Paulo Freire. Paulo Freire é intocável. Faz parte da sagrada trindade santa/secular brasileira composta por Ayrton Senna, Chico Xavier e o próprio. Mexeu com Freire, mexeu com seus admiradores, seguidores, discípulos, apóstolos, uma legião. Todos pessoas do bem, maravilhosas, super engajadas e super preocupadas com o futuro do País. E muitos ingênuos, claro, mas isso é outra história. Para elas questionar Freire equivale a declarar-se satanista, fascista, racista, sexista, pedófilo, elitista, fã das aquarelas de Hitler, da literatura de Mussolini e das músicas do Charles Manson, tudo ao mesmo tempo agora.

Mauricio de Sousa
Mauricio de Sousa: alfabetizando de maneira divertida desde 1959

Sua singela sugestão de “abandonar o método Paulo Freire” vai custar caro. O que se seguirá é o equivalente apologético de um ataque de piranhas. Mordidas por todos os lados. Você será obrigado a ouvir pela milésima vez um coro de ofendidos pregando o evangelho freiriano: Freire e suas lutas, Freire e suas vitórias, Freire e seu martírio, Freire e seu reconhecimento tardio.Vai ter que ouvir que o profeta educador de barbas brancas e fala mansa foi premiado pela UNESCO, que foi alçado a Patrono da Educação Brasileira em 2012, por meio de lei sancionada pela ex-presidente Dilma Rousseff, a “viúva Porcina dos doutorados”, a que foi sem nunca ter sido. Vai ter que ouvir, sem ter chance de colocá-la em dúvida, a informação que Paulo Freire “é o terceiro autor mais citado em trabalhos acadêmicos no mundo, superando Marx e Foucault”. Não adianta tentar perguntar quem são o primeiro e segundo (serão dois chineses?): não vão te dar tempo em meio à avalanche de boas intenções. Vão te informar que “Pedagogia do Oprimido” é o único título brasileiro a aparecer na lista dos cem livros mais requisitados em listas de leituras obrigatórias em universidades de língua inglesa. Que o método educacional freiriano é a “base do ensino pedagógico nas melhores universidades do mundo, incluindo Harvard e Oxford”. Por fim virá uma coletânea de palavras mágicas: sujeito crítico, educação transformadora, oprimidos versus opressores, pedagogia do amor, não há verdades absolutas etc., etc., etc.

Depois do frisson, quando todos já se sentirem mais tranquilos por terem dado a devida surra no herege, você pode dar um xeque: “tá bom, eu entendi que Paulinho é o bom, mas estou vendo aqui no Google que em 2018 o Brasil ficou em 119º lugar no ranking de qualidade na educação do World Economic Forum, atrás da Etiópia, Quênia e Zimbábue. Ou seja, pode dar certo em Harvard e em Oxford, mas não no Brasil”.

Isso equivale a dizer que o rei está nu.

Obviamente, os mais devotos vão questionar a fonte, a informação ou sua idoneidade moral. Uns vão dizer que é fake news, outros que a culpa foi das mudanças promovidas na educação pelo governo “golpista”, ainda outros vão te acusar de racista por estar criticando a educação da Etiópia, do Quênia e do Zimbábue.

Mas o rei vai continuar nu, cercado de gente inteligente jurando que consegue ver sua velha roupa nova. É possível que a guarda pretoriana do rei procure esconder sua nudez com os escudos e tentem inverter o tema da conversa, colocando você na berlinda. Talvez indaguem: “Não me diga que você é mais um desses que querem implantar esse absurdo do Escola Sem Partido? É tão tolo acreditar que o método freiriano serve para doutrinação marxista! Que bobagem!”.

Pense bem antes de responder. Se justificar que nem Olavo de Carvalho aprova o Escola Sem Partido, você está perdido. Pronunciar o nome que não deve ser citado sem a intenção de, em meio a superiores risinhos irônicos, chamá-lo de astrólogo, ignorante, fanático e espalhador de teorias da conspiração é sua sentença de morte social. Melhor não ir por esse caminho. Dê a resposta simples: diga que é contra o Escola Sem Partido porque representa uma burocratização desnecessária no trabalho dos professores. Só.

Questionar Paulo Freire equivale a declarar-se satanista, fascista, racista, sexista, elitista, tudo ao mesmo tempo

Mas se estiver com paciência, pode expor um paradoxo para os apóstolos freirianos. Diga que não entende por que justamente os simpatizantes do comunismo reclamam quando se diz que o método freiriano propicia a doutrinação comunista. Do que estão reclamando? Não deveriam achar bom e defender como positiva a suposta doutrinação comunista propiciada pelo método? E não foi justamente o movimento estudantil marxista quem primeiro difundiu as cartilhas escritas por Paulo Freire? Por que os estudantes marxistas fariam isso se não fosse para alfabetizar as massas visando a revolução comunista?

Silêncio no salão, interrompido por alguma tosse seca. Agora o rei não apenas está nu como perdeu a pele.

Se estiver disposto a uma boa briga, pode aproveitar que todos estão engasgados e jogar mais água na fervura. Que tal perguntar: “E é verdade mesmo que Paulo Freire copiou o método Laubach? Que só trocou cristianismo por marxismo? O que vocês acham?”.

Certamente vão responder, indignados, que isso não passa de teoria da conspiração. Agora é hora de seu golpe de mestre. Do momento que estava esperando. Diga: “Querem uma teoria da conspiração de verdade? Que tal essa? Mauricio de Sousa foi o grande vencedor das eleições de 2018”.

Risos nervosos. Como assim? — perguntarão.

Hora de sua palestra. Comece lembrando que o verbete sobre Mauricio de Sousa na “Enciclopédia dos Quadrinhos”, de Fernando Goida e André Kleinert, o chama de “Walt Disney brasileiro”. Respeito! Todo mundo já leu alguma revista em quadrinhos da Turma da Mônica. Podemos até nos arriscar a dizer que gerações de brasileiros se alfabetizaram lendo revistas da Turma da Mônica. Esses quadrinhos, inclusive, são muito usados nas escolas. Sem contar os subprodutos paradidáticos, tipo “ABC da Turma da Mônica”, “A Turma da Mônica viaja pelo Brasil”, “História do Brasil com a Turma da Mônica”, “Clássicos da Literatura estrelados pela Turma da Mônica” e por aí vai. Produzidos em escala industrial, são BBB’s: bons, bonitos e baratos. O que quase ninguém percebeu é que se tratava de um Cavalo de Troia.

Recentemente, Mauricio de Sousa foi pressionado por certos movimentos sociais a incluir pautas da teoria de gênero em suas histórias. Exigiam que Magali trocasse seu lendário vestidinho amarelo por um azul (Mônica podia continuar de vermelho), que Cebolinha, Cascão e Chico Bento usassem rosa e aparecessem brincando de bonecas. Educadamente, serenamente, como é seu estilo, Mauricio de Sousa respondeu em entrevista para o jornal “Folha de S. Paulo”: “Não posso mudar o comportamento dos nossos personagens com novas bandeiras, novas tendências, novas ideologias, e arrebentar toda a nossa história (…). Se é uma bandeira que estão levantando agora, nós não devemos levantar junto. Se é uma bandeira que já foi empunhada pela sociedade, daí nós temos de estar lá”.

Ou seja, as revoluções no universo da Turma da Mônica obedecem ao ritmo da sociedade, não ao de movimentos organizados. Suas mudanças são lentas e graduais, reformando o que precisa ser reformado, sem rupturas bruscas, preservando a tradição. Por isso, nas histórias mais recentes, Chico Bento não solta mais balões de São João e Cebolinha parou de pichar muros para provocar a Mônica. Tina deu a entender que é gay. Na Turma da Mônica Jovem, versão em mangá dos personagens, a protagonista usa o bordão feminista “meu corpo, minhas regras”, Cebolinha (agora Cebola) fez tratamento fonoaudiológico para tratar sua dislalia, Magali tornou-se adepta de alimentação saudável e Cascão, de vez em quando, toma banho.

Gilberto Freyre: quem aprendeu a ler com o Paulo Freire jamais vai conseguir ler o Gilberto

Mas a bomba veio depois. Após justificar sua posição, Mauricio de Sousa declarou: “Eu me coloco como um criador com um nível de cultura que tende para um conservadorismo”.

Bingo! Foi isso. Eis a explicação de por que, após décadas e décadas de aplicação do método freiriano de “formação de cidadãos críticos” (seja lá o que isso signifique) nas escolas brasileiras, em 2018 o país deu uma guinada conservadora, renegando as pautas progressistas. Enquanto todo mundo estava ocupado assistindo, sem prestar muita atenção, às lacrações de “Malhação” e do “Encontro com Fátima Bernardes”, as crianças que leram Turma da Mônica cresceram e se tornaram eleitores. O conservadorismo que absorveram durante anos emergiu. A menina Mônica batendo nos meninos é algo profundamente feminino sem ser necessariamente feminista. Jeremias é um menino negro que concorda com Morgan Freeman. Papa-Capim não é um militante da demarcação de terras indígenas. Rolo sempre foi um porco chauvinista. Sansão é um coelho de pelúcia encardido azul. A Turma do Penadinho é pura tradição folclórica. Bidu não é um carnívoro vegetariano. O Louco explicita problemas do movimento antimanicomial. O Astronauta, como sua contraparte na vida real, talvez se tornasse ministro. Tudo justificado pela filosofia estoica do dinossauro Horácio, o alter ego do próprio Mauricio.

Como não se deram conta antes!? A luta, a resistência, não era contra a Globo ou as brincadeiras de velho safado do Silvio Santos, nem contra Olavo de Carvalho, Frota, Fausto Zamboni, Thomas Giulliano, o “Ele Não” ou mesmo contra o Moro. O verdadeiro inimigo estava em casa, nas escolas, nas bancas, nas livrarias, jogado no chão, às vezes sem capa, espalhado pelos quartos de brinquedos: o verdadeiro inimigo era a aparentemente inofensiva Turma da Mônica, era o conservadorismo de entrelinhas do fabuloso quadrinista Mauricio de Sousa.

Portanto, se é verdade que o método Paulo Freire é uma ferramenta de doutrinação comunista, trata-se de uma ferramenta duplamente falha: nem alfabetiza direito, nem doutrina direito. Por outro lado, ficou provado que as histórias da Turma da Mônica fazem seu trabalho muito bem. Coisa de gênio!

Silêncio sepulcral entre os freirianos.

O silêncio só será quebrado pelo som da queda da coroa do rei nu e sem pele. Olhares furiosos. Talvez alguém pense em esfaqueá-lo, mas é pouco provável que realize essa fantasia. Não no meio da festa.

É quase certo que a rodinha se disperse e te deixem falando sozinho. Se isso acontecer, dê seu xeque-mate: “Querem saber? Quem aprendeu a ler com Paulo Freire jamais vai conseguir ler o Gilberto”.

fonte: revistabula

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