A inquisição nossa de cada dia ou a paisagem de 2019 em 1731

* Por Eliana Alves Cruz *

Com alegria e saudade no peito rumei para Salvador neste início de 2019. Se a Bahia fosse outro país (há quem diga que seja), eu poderia perfeitamente pleitear minha dupla cidadania. Nasci no Rio de Janeiro, mas sou baiana de pai, mãe e todo o povaréu antes deles. Infelizmente para quem defende o separatismo; felizmente para os que não o desejam; e indiferentemente para quem nunca pensou no tema, cada pedaço do Brasil é um pouco dele todo. E a Bahia, especialmente Salvador, não escapa disto.

Toda esta introdução para dizer que pela milésima vez fui “pegar um axé” no Pelourinho. Entrei na recém-inaugurada igreja da Venerável Ordem Terceira de São Domingos de Gusmão e me deparei com o nosso século em ruínas do conhecimento. A igreja é um espetáculo de construção datada de 1731. No teto da nave principal, um colosso de uma pintura que dá uma impressão tridimensional de que a cena entra pelo concreto. A riqueza do folheado a ouro, as paredes caiadas de branco, os espaços demarcados respeitando de tal forma o original que para quem tem um pouco de imaginação é possível visualizar o cenário de um filme de época. E onde está “o nosso século em ruínas do conhecimento?” Em um quadro na sacristia.

A pintura enorme na sacristia da igreja localizada no Terreiro de Jesus retrata um milagre. Uma inscrição na imagem de São Domingos segurando um Santíssimo Rosário acima de uma fogueira onde livros queimam diz: “Triunfo do cristianismo pelo Santíssimo Rosário. Os livros dos cristãos salvos e os dos hereges queimados”. Petrifiquei diante da imagem examinado as expressões dos rostos dos fiéis, a fogueira… e os livros nela. Petrifiquei porque aquela pintura restaurada em uma igreja de quase três séculos conversou comigo, em 2019. Foi impossível não visualizar de imediato o lindo livro “Omo-Oba, história de princesas”, de Kiusam Oliveira, que foi censurado pela escola Firjan/Sesi, de Volta Redonda (RJ), no início do ano passado. Impossível não escutar a voz da Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, gritando contra a lei 10.639 que estabelece o estudo da história da África no currículo. Impossível não lembrar dos protestos contra a exposição Queermuseu ou das bancadas da Bíblia em todas as esferas governamentais atacando ferozmente o que consideram “dos infiéis”. Livros, filmes, músicas, exposições… tudo, enfim, que não veja pecado no corpo, no prazer, no amor de toda forma, na ciência e nas luzes é alvo deste fogo. Tudo demorando em ser tão 1731 e não 2019. Estamos no século 18 flertando com um desejo morno o século 21. Oxalá fosse o contrário!

Uma turista ocasional pode abrir os olhos e ver. Uma visitante qualquer pode se deparar com a história resumida da sua nação em um quadro bem restaurado numa igreja do Pelourinho. Olhei bem nos olhos voltados para o alto em agradecimento de São Domingos de Gusmão e disse: “Quero ler os livros dos que vocês consideravam hereges. Desta forma, você me obriga a escrevê-los, já que hoje me vejo na porção que arde na sua fogueira”.

A igreja belíssima e atualíssima no seu atraso logo ali, há poucos metros de “onde escravos eram castigados e hoje um batuque, um batuque…”. A letra dos baianos Caetano e Gil segue dizendo que “um batuque estimula”. Na verdade, ele teima. Os atabaques sempre se atrevem a continuar soando. E assim, de teimosias resistentes à inquisição nossa de cada dia, vamos escapando pelas beiradas desta idade média mais que tardia, deste futuro de 288 anos para trás.

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Eliana Alves Cruz, carioca, escritora e jornalista (colabora com o site The Intercept Brasil), pós-graduada em comunicação empresarial. Eleita conselheira municipal de cultura do Rio de Janeiro na linha de literatura. Vencedora do concurso de romances da Fundação Cultural Palmares/MINC 2015, com a história baseada na trajetória de sua família, desde a metade do século 19, na África, até nossos dias. Autora na coletânea Cadernos Negros 39 (poesias) e 40 (contos), do Quilombhoje literatura. Também está no livro Perdidas, histórias para crianças que não tem vez, da Imã Editorial. Acaba de lançar seu segundo romance: O crime do cais do Valongo (Editora Malê).

fonte:RPW

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