Os principais pontos do último dia da audiência sobre o aborto

Confira os principais argumentos pró e contra a descriminalização do aborto expostos no último dia de audiência pública sobre o tema no STF

Os principais pontos do último dia da audiência sobre o aborto
Confira abaixo o posicionamento e argumentos dos principais debatedores (Foto: Carlos Moura/SCO/STF)

Chegou ao fim, na última segunda-feira, 6, a audiência pública sobre a descriminalização do aborto, promovida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O debate foi encerrado pela ministra Rosa Webber, do STF, que agradeceu os cerca de 60 representantes de entidades que participaram dos dois dias de evento.

A audiência pública foi convocada por Rosa Webber com base na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, ajuizada pelo Psol. A ação questiona os artigos 124 e 126 do Código Penal, que criminalizam o aborto. Ainda não há data para que a ADPF 442 seja julgada.

Representantes de organizações pró e contra o aborto participaram do segundo dia de debates, entre elas instituições religiosas, de direitos humanos e de cunho jurídico. O Opinião e Notícia separou alguns dos principais pontos abordados na última segunda-feira.

A favor da descriminalização do aborto

A professora de pós-graduação em Ciências da Religião da PUC-SP Maria José Rosado Nunes representou o movimento Católicas pelo Direito de Decidir. Ela defendeu que a escolha de abortar seja unicamente da mulher, afirmando que nem o Estado nem a Igreja podem interferir na decisão, ressaltando que a clandestinidade atinge mais as mulheres negras e pobres e que muitos países conservadores, como a Irlanda, estudam descriminalizar o aborto.

“Imoral é que outros decidam sobre o que nós mulheres podemos ou não fazer dos nossos corpos, da nossa capacidade reprodutiva, da nossa vida. O Estado, a Igreja ou qualquer outra instância não pode decidir sobre isso”, afirmou Nunes.

A tradição judaica defende o aborto visando a integridade física da mãe, independentemente do estágio da gravidez. O posicionamento foi feito pelo rabino Michel Schlesinger, que representou a Confederação Israelita do Brasil. De acordo com o rabino, inúmeras razões podem justificar o aborto, desde o risco à vida da mãe até a falta de condições socioeconômicas.

Com base nos conceitos do judaísmo, Schlesinger afirmou que não existe vida completa durante a gravidez, mas uma em potencial, “que é sagrada e precisa ser resguardada, no entanto, permanece em debate com diversos outros valores que o cercam”.

A defensora pública Fabiana Galera Severo, que representou o Conselho Nacional de Direitos Humanos, apontou que a criminalização do aborto contradiz a evolução internacional do tema e está em desacordo com princípios constitucionais. Para ela, a posição é “incompatível com a proteção internacional aos direitos humanos e com os compromissos que o Estado brasileiro assumiu perante a comunidade internacional”.

Ademais, a defensora pública defende que a descriminalização do aborto não viola o direito à vida, mas garante que a vida da mulher seja preservada. Por fim, ela apontou o machismo na proibição à prática. “A criminalização do aborto é estritamente feminina, já que, apesar da gravidez decorrer de um ato praticado por indivíduos de ambos os sexos, a consequência da penalização jurídica não atinge os homens que praticam o ato sexual irresponsável”.

Contrariando muitos argumentos dos expositores contra a descriminalização do aborto, a diretora executiva do Conectas Direitos Humanos, Juana Magdalena Kweitel, afirmou que a necessidade de defesa dos direitos das mulheres dá legitimidade ao STF para que possa julgar o tema. Ademais, ela fez críticas à falta de representação feminina no Congresso, que impede que o assunto seja julgado corretamente.

“É ingênuo e contraditório esperar que um Congresso predominantemente masculino e branco exerça esse papel de proteção dos direitos das mulheres”, afirmou, citando ainda a tentativa da aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 181, que proibiria o aborto em qualquer circunstância, até mesmo naqueles previstos em lei, como é o caso de gravidez fruto de estupro.

A professora de Direito Constitucional da UERJ, Cristina Telles, seguiu a mesma linha de raciocínio e destacou que foi o Judiciário que descriminalizou o aborto em 20 países, entre eles EUA, Reino Unido, França, Itália, Portugal, Bélgica, Canadá, Espanha, México.

“A nossa legislação penal é dos anos 1940, momento em que a mulher não era titular plena de direito em diversos aspectos”, lembrou, apontando que depender do Congresso seria complicado, pois é um assunto que “é considerado um risco eleitoral, gera perda de votos”. “É por isso que é mais do que legítimo que a matéria seja tratada por uma instituição que não depende de votos”, disse Telles.

A professora Ana Carla Harmatiuk Matos, representante do Instituto Brasileiro de Direito Civil, adotou uma postura mais moderada ao falar da possibilidade de descriminalização. Ela lembrou que morrem quatro mulheres por dia, apenas no Brasil, devido aos abortos clandestinos. “A pessoa, com todas as suas circunstâncias da vida concreta, é que deve ser alvo da proteção”, destacou Matos. “Não se trata de apologia ao abortamento. Mas, quer por dados da realidade, quer pela violência real ou simbólica, pelo estigma que produz e pela hermenêutica jurídica, a descriminalização se impõe”, concluiu a professora, destacando ainda que a gestante merece maior atenção e suporte.

Representando o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), a advogada Eleonora Rangel Nacif usou o conceito de laicidade para defender que conceitos religiosos não sejam aplicados na abordagem do tema. Para ela, as pessoas que não podem abortar devido à religião devem, simplesmente, não abortar, mas “não podem impor a uma nação inteira que sigam suas opções, não podem impor sua fé e visão de mundo aos demais cidadãos”.

A advogada citou diferentes riscos à saúde da mulher devido aos abortos clandestinos. Além disso, lembrou que até mesmo os casos autorizados por lei não são tão bem aceitos. Segundo Nacif, muitos médicos, por medo de serem criminalizados, se negam a realizar o procedimento.

A defensora pública federal Charlene da Silva Borges, que representou a Defensoria Pública da União (DPU), destacou o machismo da lei penal, apontando a sua visão androcêntrica – feita por homens para homens. Dessa forma, Borges afirmou que o aborto é um problema de saúde pública, explicando que a manutenção da criminalidade ao aborto teria um viés ideológico. Para Borges, o Estado deveria promover mais ações e práticas de políticas públicas de planejamento familiar e educação sexual para todas as mulheres brasileiras, o que ainda não acontece.

Coordenadora da Clínica de Direitos Humanos da UFMG, a professora Camila Silva Nicácio destacou que os dados sobre a quantidade de mulheres que realizam o aborto demonstram que a criminalização falha em inibir a prática no país. Além disso, categorizou a criminalização como discriminatória e desproporcional.

Para a professora, o STF tem a legitimidade de fazer valer determinações do direito internacional sobre direitos humanos, o que permite ao órgão julgar a possível descriminalização do aborto. Ademais, Camila Nicácio também defendeu um maior investimento do Estado em políticas de planejamento familiar.

Contra a descriminalização do aborto

Luciano Alencar da Cunha, representante da Federação Espírita Brasileira, usou como base o Código Penal para defender seu posicionamento contrário a descriminalização do aborto. Para ele, a vida humana precisa ser protegida desde a sua concepção, com o Código Penal preservando “o direito de nascer”.

Além do Código Penal, Cunha citou a Constituição e o Código Civil para reforçar seu argumento. Ele apontou que a descriminalização do aborto abriria portas para um mercado da prática. Ele defendeu um melhor planejamento familiar, a facilitação da adoção, a educação sexual nas famílias em escolas e instituições e a assistência à maternidade e à primeira infância.

A advogada Angela Vidal Gandra Martins Silva, representante da União dos Juristas Católicos de São Paulo (Ujucasp), criticou a ação do Psol em buscar o apoio do STF, em vez de discutir o assunto no Congresso. Ela afirmou que o acolhimento da ADPF 442 seria um “aborto jurídico” e relembrou que o Congresso já rejeitou a descriminalização.

Por outro lado, Vidal defendeu um maior apoio às mulheres em seu planejamento de vida, afirmando que o cuidado com o ser humano tem de ser feito previamente, não posteriormente. “Eu não quero o ato do aborto seguro, eu quero o antes e o depois para a mulher”, apontou Vidal.

Edna Vasconcelos Zilli, especialista em estado constitucional e liberdade religiosa e representante da Associação de Juristas Evangélicos (Anajure), afirmou que o Judiciário não tem competência para julgar a questão, cabendo ao Poder Legislativo debater o assunto. “Se até o momento o regramento do aborto não foi alterado, depreende-se que a vontade popular não foi alterada”, destacou Zilli.

Zilli afirmou que o principal direito a ser debatido é o direito fundamental e humano à vida, com o feto já possuindo dignidade humana e titular de direitos fundamentais. “Não é unicamente saúde pública, não é moralismo, envolve princípios e direitos fundamentais caríssimos e que não podem ser conduzidos de maneira leviana por aqueles que buscam apenas adquirir direitos de acordo com a sua conveniência”, disse Zilli.

O senador Magno Malta (PR-ES) participou da audiência como representante da Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família. Ele foi mais um a defender que o debate ocorra no Congresso, apontando um “ativismo judicial” do STF. “O Supremo tem que cumprir apenas o seu papel de guardião da Constituição. Esse debate que aqui se dá é de parlamento”, apontou Malta.

A advogada Janaina Paschoal, professora de Direito da USP – que ficou conhecida no período do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e rejeitou recentemente a posição de vice na chapa de Jair Bolsonaro (PSL) -, abordou o teor jurídico da ADPF 442, afirmando que a ação quer legalizar o aborto, não apenas descriminalizá-lo.

“Existe uma diferença grande entre não criminalizar e dizer que existe um direito fundamental ao aborto”, apontou, destacando que o foco da ADPF parece ser o artigo 124 do Código Penal, que aborda a condição da mulher. “Mas esses argumentos não são aplicáveis àqueles que praticam o aborto na gestante, sobretudo àqueles que o fazem com intuito de lucro”, ressaltou.

O procurador José Paulo Leão Veloso Silva, representando o estado de Sergipe, foi mais um a afirmar que o STF não tem legitimidade para decidir a respeito do tema. Ele afirmou que a legislação brasileira sobre a medicina impede a regulamentação do aborto.

Dados estaduais

A defensora pública Ana Rita Souza Prata, que representou o Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem) – da Defensoria Pública do Estado de São Paulo – e a Clínica de Litigância Estratégica em Direitos Humanos da FGV, afirmou que o aborto é um direito da mulher previsto na Constituição e em regras internacionais de direitos humanos.

Ela citou dados de uma pesquisa de 2017, quando o Nudem teve acesso a 30 ações penais e socioeducativas, nas quais mulheres eram acusadas de provocar o aborto em si mesmas. Foram impetrados 30 habeas corpus, mas apenas cinco foram concedidos. Segundo a pesquisa, a grande maioria das mulheres eram mães de até quatro filhos, estavam na casa dos 30 anos e eram provedora da casa. Apenas uma fazia faculdade, a maioria não tinha completado o ensino médio, e tinha uma renda média de R$ 900 mensais. Em 21 dos casos, profissionais de saúde pública tiveram participação na denúncia dessas mulheres, denunciando, testemunhando ou entregando documentos sigilosos, o que desrespeita o Código de Ética Médica.

“A Defensoria Pública tem o dever constitucional de estar próxima dos mais vulneráveis e nessa função ficamos frente à frente com pessoas que ninguém mais quer ouvir. […] São elas que morrem ou sofrem complicações de saúde, mas também é para elas que o Estado mira a sua face mais cruel de reprovação”, apontou Prata.

A defensora pública Lívia Miranda Müller Drumond Casseres, da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, também apresentou dados sobre o aborto. O órgão analisou 42 ações penais da Justiça do Rio de Janeiro, ajuizadas entre 2005 e 2017, traçando o perfil da mulher criminalizada. Para isso, a entidade separou o caso em dois grupos.

O primeiro grupo foi composto por mulheres que abortaram sem assistência, usando métodos caseiros rudimentares, o que levou à busca de ajuda no serviço público de saúde. Neste grupo, 60% das mulheres eram negras, com idades entre 18 e 36 anos, moradoras de periferias ou favelas. Mais de 85% estava com mais de 12 semanas de gravidez, o que demonstra a falta de conhecimento sobre a prática.

O segundo grupo foi formado por mulheres que buscaram clínicas clandestinas. Ao todo, 53% eram brancas, com um grau maior de escolaridade, fazendo o aborto logo no início da gestação, evitando complicações de saúde. Para a realização da prática, elas pagaram entre R$ 600 e R$ 4,5 mil.

“Esse debate é decisivo para revelar que a escolha dessa política penal representará uma escolha de vida e morte para mulheres negras”, destacou Casseres, revelando que nenhuma mulher foi mantida presa durante o processo criminal.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *