Por Fernando Dourado Filho

Quando eu tinha 16 anos, uma linda estudante da Aliança Francesa do Recife me encurralou no corredor da biblioteca e, ali mesmo, me sapecou um beijo diferente dos que andara trocando até então. O nome dela era Isabel e, ao contrário de outros encontros furtivos, aquele instante resultou num namoro que, entre idas e vindas, durou até a época da faculdade. Ela sempre brincava comigo: “Você era tão ensimesmado com sua intelectualidade que precisei eu mesma tomar a iniciativa”. Estava certa. E fiz muito bem em não ter ido à delegacia prestar queixa. Pois de lá para cá, transcorreram 43 anos e nunca mais deixei de namorar. Embora não me sinta um dependente da companhia feminina, mesmo porque tenho índole solitária, não caberiam nos dedos do corpo a quantidade de relacionamentos que tive. Uns poucos podem ter durado semanas; alguns vararam meses, mas a maioria deles se contam em anos.

Nesse contexto, a dinâmica de papéis sofreu alternâncias. Em algumas ocasiões, era nítido que a mulher queria estabelecer um relacionamento, um vínculo ou só um flerte. Desinteressado, por alguma razão, eu sabia me fazer de desentendido. Ou, o que era mais raro, alegava as razões que me impediam de ir adiante, se fosse o caso. Tanto podia ser por conta de já estar namorando com outra mulher, como porque não conseguia vê-la como amante, só como amiga. Outras vezes, fui eu a parte fraca. Foram centenas os estratagemas de que me vali para chamar a atenção de uma mulher, lutando para não me submeter a maiores desgastes de imagem e, é claro, mantendo o amor próprio. Que saiba, geralmente funcionou. Assim, tive amores com mulheres solteiras, casadas, separadas, viúvas, louras, ruivas, morenas, sequeladas, hemiplégicas, cancerosas, cardíacas, diabéticas, atléticas, psicóticas e até umas normais.

Embora tenha sido um sujeito bastante tímido até certa idade, sequer isso me impediu de ser tenaz, de lutar por um “sim”, de não me desencorajar com um “não”. Se tivesse sido excessivamente recatado, na verdade, não teria saído do lugar. Cedo aprendi que um beijo, um único beijo, desses bem demorados, pode mudar o curso da história entre um homem e uma mulher. Do nada, pode brotar uma faísca. E daí, uma labareda que vai nos aquecer o coração por anos. Por mulheres, já perdi aula, sono, avião, reunião, apetite, enterro, amigo, casamento, cabeça e negócio. Mas sempre valeu a pena. Mesmo que o relacionamento tenha sido fugaz, não fui dormir com a dúvida de que, por tibieza ou covardia, perdera a mulher de minha vida. Assim sendo, já fiz promessas que nunca cumpri: “Ah, meu Deus, se der certo com essa, juro que não olho mais para ninguém”. Mas, enfim, podia fraquejar. Tudo isso é humano, não somos minerais.

Sempre soube que havia homens e mulheres sem limites. Gente que tomava a rejeição de forma patológica. Mas ninguém nunca chegou para mim para contar proezas. Não suportaria conversar com um sujeito que alegasse ter forçado uma mulher a ter relações sexuais com ele. Duvido que ele ousasse, mesmo bêbado e, se tentasse, certamente veria que meu nojo não conheceria disfarce. Com duas palavras, ele coraria de vergonha. Em todos esses anos, em várias partes do mundo, sofri assédios de formas variadas. Uma vez, até de um homem, coitado. Ele era gente boa e estávamos bebendo no Belmonte do Aterro, no Rio. Ele disse que gostara de minha conversa e perguntou se eu não queria lhe dar uma chance. Achei divertido, desejei-lhe sorte, mas disse que nunca tivera essa curiosidade. Certa feita, duas mulheres não me deram escolha em Santiago, no Chile e, no final, achei ótimo. Não, não fui à delegacia. Fomos, sim, almoçar felizes.

Mas eis que de repente, quando se acha que os urubus dos algoritmos esqueceram o tema da moda e sobrevoam outro lixão em busca de carne fresca, ligo a televisão e vejo uma “entertainer” americana fixar o teleprompter e, solenemente, se sair com a fala bem calibrada e bem redigida em que eles se esmeram, endereçada a uma audiência aparentemente enlutada. O que era aquilo? Quem morrera? Ora, de uma fala que começara se referindo a Sidney Poitier, o tom evoluiu para um requiém moralista, mais uma vez endereçado a Hollywood e seus fantasmas. Até a amada Meryl Streep se prestou à fantasia de Halloween, o que dá uma dimensão de que ninguém quer ficar mal nas redes sociais. E por conta do psicótico Harvey Weinstein, a apresentadora demonizou os homens, imbecilizou as mulheres, lobotomizou os adolescentes e, eis o dividendo, criou uma plataforma para ser presidente. Nessa pisada, um dia Anitta vai para a ONU.

Ato contínuo, ontem os jornais repercutiram com mais nitidez os novos cânones da ordem que deverá prevalecer doravante. Códigos de conduta os mais estapafúrdios tornam perigoso até pegar um elevador. Um elogio a uma mulher parece que se torna tão grave quanto um homicídio doloso ou a articulação de um cartel para superfaturar uma obra pública. De todos os lados, as pessoas tentam pegar carona na fala fatídica da pré-candidata para ficar bem na fita e ajudar a veicular hashtags contra o que seria a tal hegemonia masculina. Pobres homens. Enquanto isso, mulheres tentam desencavar episódios perdidos no passado remoto em que possam ter se sentido forçadas a ter relações indesejadas ou não consentidas. E, cedendo a impulsos, embarcam no denuncismo mofado. Constrangidos, amigos e familiares, sem saber o que dizer, se declaram orgulhosos do gesto libertário, uma forma de suavizar o patético.

Até que neste 10 de janeiro ecoaram da França – sempre ela – os brados retumbantes do bom senso. Em manifesto publicado ontem no “Le Monde”, dezenas de personalidades denunciaram o caráter eminentemente “americano” dessas patacoadas. À frente delas, ninguém menos do que a “A bela da tarde” Catherine Deneuve. Aludindo claramente ao exagero desse moralismo medieval, as palavras ecoaram o depoimento bem humorado de Danuza Leão, quase nonagenária, que também admitiu perplexidade com o auto da fé da empresária Winfrey. Na verdade, pouco se me dá se pedirem a castração química de Harvey Weinstein, o que, de alguma forma, já conseguiram. Ademais, desconfio que nunca se fez tão pouco sexo como nesses tempos que vivemos. Dizem até que os jovens preferem simulá-lo em joguinhos para esse fim em redes sociais. Seja como for, a voz da França trouxe um alento ao dia. De que sexo é bom – e viva o flerte.

Merci, Catherine. And give me a break, Oprah.