A música das línguas

Nelson Motta, O Globo

Outro dia vi na televisão um bom filme noir com a bela e sexy Soraia Chaves e os grandes atores Nicolau Breyner e Joaquim Almeida. “Call girl” era ambientado em Portugal e falado em português, mas foi exibido com legendas em “brasileiro”.

Parecia piada de português, ou de brasileiro, ao mesmo tempo. Mas, acompanhando o filme, vi que não era má ideia.

Não só pelas muitas expressões lusas que provocam sustos e constrangimentos entre nós, como “tomar uma pica no cu”, significando uma injeção na bunda, e “entrar na bicha”, para formar uma fila, ou ouvi-los chamando carinhosamente as suas crianças pequenas de “putos”.

 

Soraia Chaves

 É na cadência e na musicalidade da fala que as duas línguas parecem cada vez mais distantes e distintas, embora tão próximas.

Há décadas, graças às novelas e à música popular, os nossos colonizadores já habituaram os ouvidos à fala mole e chiada dos colonizados. Nós, não. Muitas vezes, quando ouço portugueses falando mais rápido, e mais ainda quando cantam um rock ou um rap, as legendas seriam bem-vindas.

Diferentemente da poesia escrita, a letra de música deve ser sonora e literária ao mesmo tempo, com o som das palavras se ajustando organicamente à métrica e ao ritmo da melodia. Porque não é feita para os olhos, mas para os ouvidos. Por isso, ouvir um fado cantado em “brasileiro” soaria tão anacrônico quanto um samba com sotaque lusitano.

Talvez por isso, quando cantou o clássico “Coimbra” em Portugal, Caetano Veloso se esforçou para reproduzir a sonoridade original da letra, para assim soar mais bonito e melodioso.

Assim como a maravilhosa cantora Teresa Salgueiro gravou um disco de clássicos da MPB em perfeito “brasileiro”, com só um pingo de sotaque, que lhe deu ainda mais charme e originalidade. E o uruguaio Jorge Drexler gravou “Dom de iludir”, de Caetano, em sonoro “brasileiro”.

Para esses ótimos intérpretes portugueses modernos, Ana Moura, Carminho, António Zambujo, Cristina Branco, Camané, Cuca Roseta, a melhor forma de chegar aos ouvidos do Brasil é caprichar nos chiados e nas vogais abertas quando cantarem letras criadas em “brasileiro”. Sem legendas.

 

Nelson Motta é jornalista.

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