Ferreira Gullar em dose única

No mês passado, a Ana E. relatou na Revista Digestivo como foi o “ofício” do autor Domingos Pellegrini em Belo Horizonte.

Só para refrescar a memória: o Ofício da Palavra é uma iniciativa do Museu de Artes e Ofícios da capital mineira em que um autor conhecido é entrevistado por um mediador e pelo coordenador do projeto, o jornalista e também escritor José Eduardo Gonçalves.

Em rodinhas informais, alguns escritores mineiros adotaram a piadinha infame do colega Francisco de Morais Mendes quanto a chamar o evento de Santo Ofício da Palavra. Mas isso é só mesmo para o deleite da turma, porque o tom das palestras geralmente é informal e o autor “sabatinado” acaba se sentindo tão à vontade quanto o público.

A prova disso foi o último encontro, realizado na terça-feira, 23 de outubro, e cuja atração foi o escritor Ferreira Gullar. E põe atração nisso: o público formado pelos mais diversos tipos de pessoas encheu o saguão do museu. Eram trabalhadores, estudantes, educadores, gente de passagem que resolveu entrar para ver o que “tava pegando” etc., todos se esgueirando entre as colunas e sentando no chão, ou onde desse, para assistir a um pedacinho da palestra.

O poeta maranhense tem 77 anos, já escreveu diversos livros, traduziu outros tantos, ganhou inúmeros prêmios e foi indicado ao Nobel de Literatura em 2002. Além da poesia, Ferreira Gullar realizou trabalhos como crítico, teatrólogo e jornalista e participou da revista O Cruzeiro, d’O Pasquim e do jornal Opinião.

Filiado ao Partido Comunista, o autor foi preso durante a ditadura e, em seguida, exilou-se em Moscou, Santiago, Lima e Buenos Aires. Foi obrigado a viver por muito tempo na clandestinidade e só voltou ao Brasil no final da década de 70.

Uma das maiores características da obra de Ferreira Gullar é a preocupação com a realidade social aliada a uma constante busca pela renovação estética da linguagem. É justamente essa busca que faz com que ele se aproxime dos poetas concretos em 1954. Já o rompimento com o movimento concretista de São Paulo ocorreu três anos mais tarde. Na palestra, Gullar justifica essa divergência de ideais, dando a impressão de que o grupo paulista havia perdido o propósito inicial. O maior exemplo disso seria o desejo de publicarem um manifesto em favor de um tal “poema de base”, sendo que ninguém havia conseguido ainda desenvolver um poema de base.

O autor falou ainda da diferença entre o artista e o não-artista. Para ele, nem todo mundo é artista ou poderia se tornar um porque não basta talento. Se bastasse, qualquer pessoa tocaria a Quinta Sinfonia de Beethoven ao piano. O exemplo do autor é extremo, mas também pode ser aplicado à escrita literária e a outras artes. Para Gullar, é preciso haver uma motivação interior inescapável, um sofrimento causado pela necessidade de expressar em linguagem o encantamento captado na realidade. A necessidade diferenciaria, por exemplo, o artista Picasso e o homem de talento Marcel Duchamps. Para o primeiro, a produção frenética retrata essa necessidade visceral; já o segundo teria pintado os próprios quadros entre um jogo de xadrez ou outro.

Ferreira Gullar é o tipo de poeta que busca a inovação da linguagem, mas reconhece que há um limite para o sentido. Para ele, “significado não existe no ar, não é mosca. Só existe nas linguagens”. A total aniquilação sintática e a falta de intencionalidade do autor comprometeriam, assim, o conceito de “arte”. Resumo da ópera: nem tudo pode ser chamado de arte.

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