Filme sobre Nana Caymmi sai por selo de Maria Bethânia


Juntas. Bethânia, que define Nana como “a maior cantora de todos os tempos”, brinca que um dia vai gravar um disco com a amiga, “ela cantando e eu ouvindo”
Foto: Camilla Maia

Juntas. Bethânia, que define Nana como “a maior cantora de todos os tempos”, brinca que um dia vai gravar um disco com a amiga, “ela cantando e eu ouvindo” Camilla Maia

RIO – O lançamento de “Rio Sonata”, documentário de Georges Gachot sobre Nana Caymmi, pelo selo Quitanda, que Maria Bethânia tem na Biscoito Fino, amarra elos de uma história iniciada em meados dos anos 2000. O diretor franco-suíço conheceu Nana ao filmá-la como convidada do show “Brasileirinho”, para o documentário “Música é perfume” (2005), sobre Bethânia. E o CD “Brasileirinho” foi o primeiro produto da Quitanda. Mas, na verdade, quando as duas se sentam frente a frente na sede da gravadora e trocam memórias, se percebe que o encontro de agora ecoa outros, ao longo das últimas décadas, desde os anos 1960.

— Éramos duas meninas — recorda Bethânia. — Tem uma foto… Já falei que um dia vou fazer um disco com Nana, ela cantando e eu ouvindo (risos). E a capa vai ser isso, essa foto, nós duas mocinhas sendo madrinhas de um grande amigo. Não sei o ano. Mas é linda. Estamos lindas, engraçadíssimas. De minissaia, as saias eram aqui (mostra a altura na coxa). Ela está de turbante, chiquerérrima. E eu parecendo a Gisele Bündchen na passarela, seca. Nana também, sequinha.

O primeiro contato entre elas foi por meio de Dori Caymmi, irmão de Nana, que já conhecia Bethânia (“Dori ia para a Bahia para mostrar para Gil e Caetano as novidades, ensinar os acordes”, lembra a baiana). As duas se encontraram no Festival Internacional da Canção de 1966, mas Nana conta que lembra pouco de Bethânia ali (“Era muito nervosismo, muita coisa”).

— Depois fizemos o programa “Ensaio geral”, na TV Excelsior (a estreia foi no fim de 1966) — diz Nana, virando-se para Bethânia. — Nós dormíamos juntas no hotel (em São Paulo). Você lembra? Você no telefone direto, eu pensava: “Ela em vez de conversar comigo…” E a gente bebia todas.

A comida, mais especificamente o tempero santo-amarense de Dona Canô, marca as primeiras memórias mais fortes de Nana sobre Bethânia:

— Filava muita comida de Canô, de quem fiquei amiga. Bethânia tinha um apartamento na Cupertino Durão que eu frequentava muito. Depois ela enriqueceu um pouquinho e foi para outro lugar onde eu também ia sempre. Tinha festas de aniversário, Canô vinha com um carregamento de comida, eu estava em todas. Ela sempre trazia farinha, que aqui é uma merda.

Bethânia gargalha ao ouvir Nana falar, deixando claro o prazer da companhia que sustenta a amizade antiga (“A irmã que eu não tive”, como define a filha de Dorival). Mas a baiana fica séria ao comentar a força do canto da amiga:

— É a maior cantora de todos os tempos, da minha vida. A voz dela para mim me toca como Fernando Pessoa, Chico, Caetano. Sua voz tem uma brasilidade, uma raiz de terra que é linda — avalia Bethânia, que lembra o momento exato em que percebeu a grandeza de Nana. — Sempre gostei dela cantando, mas foi no dia que ela gravou a do Vinicius, “Vire essa folha do livro” (canta “Medo de amar”), o dia em que ouvi aquilo, disse: “Bom, isso é uma coisa, e o resto é outra”. Porque Nana eu ouvia cantar toda hora, cantava com ela aqui e ali. Mas ouvi aquilo e falei: “Não! Você tem que prestar atenção a isso!” Chamei Caetano e Gil no mesmo dia na minha casa. Falei: “Sentem aí para ouvir isso”.

Bethânia costuma pedir para Nana cantar essa e outras quando a encontra — “Rio sonata” mostra um desses momentos, as duas e Miúcha, nos bastidores de “Brasileirinho”.

— Já passei aperto com ela pedindo para eu cantar essa. Ela chorava de um lado e eu do outro. Outra vez, na Barata Ribeiro, não sei como o chofer não saiu chorando também.

Nana também tem sua favorita da amiga:

— Como era o nome? Se não me engano é do Caetano (abaixa a cabeça, pensa e, quando levanta, canta “A tua presença morena”). “A tua presença/ Entra pelos sete buracos da minha cabeça”. Puta que pariu. Eu nunca tive essa sensação de inveja, de ciúme, mas tinha certas músicas dela que eu dizia: “Não é dela, é minha. Por que ela está cantando e não eu?”. Mas essa foi a que mais me derrubou.

Bethânia ouve e revela:

— Sabe que Caetano fez essa canção para Nossa Senhora? Essa presença é Nossa Senhora. Lindo, né? Ele fez o “Hino a Nossa Senhora da Purificação” e em seguida fez essa.

Surpresa, Nana responde:

— Como é que eu senti isso? Bom, eu tenho uma coisa com Nossa Senhora, com Jesus… Jesus é meu cambono, né? Sem ele eu não sou nada. Não sabia disso de Nossa Senhora. Agora me atrevo a cantar.

A “verdade cruel” de Nana

A forma precisa como Erasmo Carlos define Nana no filme (“uma verdade cruel”), cai na conversa:

— Ele sofre na minha mão. E eu na dele, né? Quando eu e Bethânia convivíamos unha e carne, em 1967, a gente não saía de Roberto e Erasmo. Falam só Roberto, mas é Roberto e Erasmo. Tanto que nunca chamei Roberto para fazer nada comigo, chamo Erasmo. Porque o Erasmo se expõe, ele é uma ferida aberta, como eu. Toda semana tem que fazer curativo. Se tirar o rock dele, o ritmo, fica uma tristeza só.

Cantoras ligadas, identificam elas, pela inteligência da interpretação e a liberdade de fazerem o que querem, as duas também veem diferenças.

— Gosto do drama, da “verdade cruel” — diz Bethânia. — Só que Nana, agregado a isso, é uma cantora de notas, de rara compreensão da divisão, da harmonia, da melodia. Ela sente a perda de Tom, desses compositores finíssimos, por exigência musical. Eu canto tudo, sou intérprete. Pode ser Villa-Lobos ou uma menina que está começando, fazendo meio tropeçando. Aquilo me traduz, é mais uma coisa da intérprete.

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