Júlio César, de Shakespeare, em presídio de segurança máxima

Irmãos Taviani filmam obra de dramaturgo inglês em presídio

      por Maria do Rosário Caetano

O cinema italiano viveu sua era de ouro de 1945, com a emergência do neorrealismo (encabeçado por Rossellini-Zavattini-De Sica), até a década de 1960, quando Fellini, Visconti, Monicelli, Pasolini e Dino Risi, somados a atores da grandeza de Alberto Sordi, Vittorio Gassman, Ugo Tognazzi, Sophia Loren, Marcello Mastroianni e Claudia Cardinale encantaram o mundo. Depois dos anos da Dolce Vita, a Península viu seu espaço cinematográfico definhar nas telas planetárias. E no Brasil, em particular.

Se hoje o cinema italiano não ocupa mais o espaço que lhe reservavam os exibidores brasileiros, isto não significa que inexistam filmes peninsulares de excelente qualidade e obrigatórios a quem aprecia obras mais reflexivas. Estreou em março, em nosso circuito, o melhor dos filmes dos Irmãos Taviani, desde Allonsanfan e Pai Patrão: César Deve Morrer. Trata-se de registro originalíssimo de vigorosa encenação de Júlio César, um dos mais famosos textos de William Shakespeare, feita por detentos (assassinos, traficantes de droga e ex-integrantes da Máfia) do presídio de segurança máxima de Rebibbia, em Roma.

Os irmãos Taviani – Vittorio (de 83 anos) e Paolo (de 81) – encontraram em outro grande nome do cinema italiano contemporâneo, Nanni Moretti, o apoio necessário para difundir o trabalho dos presidiários transformado em filme. O ator e diretor de títulos memoráveis como Caro Diário e Habemus Papam cuidou, através da Sacher Filmes, da distribuição do décimo oitavo longa-metragem dos mestres toscanos. Um filme de orçamento modesto e rara síntese (apenas 76 minutos). Na Itália, César Deve Morrer foi visto por 740 mil espectadores. Número dos mais expressivos para um filme sem atores famosos, sem tramas amorosas e sem efeitos especiais.

César Deve Morrer causou sensação no Festival de Berlim, ano passado. Saiu de lá com o Urso de Ouro de melhor filme. E os octogenários Irmãos Taviani , que conquistaram a Palma de Ouro em Cannes (1977), com Pai Patrão, tiveram a satisfação de comemorar a conquista de mais um dos três prêmios mais importantes dos festivais internacionais (os outros são o Leão de Ouro, de Veneza, e a Palma de Ouro, de Cannes). Para completar, César Deve Morrer ganhou vários prêmios Donatello, o “Oscar” italiano. Inclusive o de melhor filme.

Os presidiários que, sob o comando do encenador Fabio Cavalli, foram transformados em “atores”, são vistos em César Deve Morrer em suas celas, nos corredores ou no pátio de Rebibbia. São filmados, também, durante os ensaios do famoso texto de Shakespeare. Tudo em preto-e-branco. Quando a peça sobe ao palco do “teatro” da penitenciária, o filme ganha cores fortes.

 

O “poder do discurso”

O público ouvirá, ao longo dos enxutos 76 minutos da narrativa, os magníficos diálogos shakespereanos interpretados com paixão pelos detentos-atores. E reconhecerá duas expressões do texto que migraram para nossas falas cotidianas (e contemporâneas): “Até Tu, ó Brutus” (para expressar espanto com a traição de alguém muito próximo”) e “idos de março” (que até batizou filme dirigido por George Clooney, em 2011: The Ides of March, no Brasil Tudo pelo Poder, reflexão sobre a luta pelo poder político nos EUA). O espectador ouvirá, inclusive, a defesa de Júlio César feita por Marco Antônio, no que é considerado o ápice da tragédia (escrita em 1599).

Marcus Brutus, um dos que conspiraram contra Júlio César e coletivamente o mataram, está no centro da tragédia, famosa por mostrar o “poder do discurso”. O dramaturgo concentra-se em quatro personagens principais (além do grande general, destacam-se Marco Antônio, que defenderá o legado de Júlio César, e os conspiradores Brutus e Cássio). Em papeis menores estão os senadores Cícero, Públio e Popílio Lena, além de outros conspiradores (Caska, Décio Brutus, Cinna, Címber, Trebônio e Ligário), e de Otávio César e Lépidus, que – após a morte de Júlio Cesar – formariam um triunvirato com Marco Antônio. E mais tribunos populares e duas mulheres (Calpúrnia, esposa de Júlio César, e Pórtia, esposa de Brutus). As duas não estão no filme dos Irmãos Taviani, pois o encenador Fabio Cavalli, nome fundamental na encenação que estrutura o filme, só trabalha – no Júlio César carcerário – com presos do sexo masculino.

Em certo momento da tragédia shakespereana, Marcus Brutus sofre ao perceber que alguns dos assassinos de Júlio César podem ter agido por interesses pessoais. Não em nome da justiça e contra a tirania:

“O grande Júlio não sangrou em nome da Justiça? Quem foi o vilão que lhe tocou o corpo e o apunhalou se não por justiça? Por que, se não para sustentar ladrões, iria um de nós, que atacamos o mais importante líder deste mundo, contaminar os dedos com propinas infames e vender nossos altos cargos de largas honras por tão vil metal quanto pudessem as suas munhecas agarrar? Eu preferia ser um cachorro e latir para a lua que ser romano”.

Marco Antônio, por sua vez, ao defender a memória de Júlio César, pronuncia os mais belos (e retóricos) trechos da peça e do filme. Um deles dá destaque ao manto do general morto, rasgado pelos punhais dos conspiradores:

“Se os senhores têm lágrimas, preparem-se para derramá-las agora. Todos conhecem este manto. Lembro-me da primeira vez em que César usou este manto: foi numa noite de verão, em sua barraca, no dia em que ele derrotou os Nervii, os guerreiros belgas mais difíceis de vencer. Vejam, aqui entrou o punhal de Cássio. Vejam que rasgão fez Caska, pessoa maldosa. Aqui apunhalou o bem-amado Brutus, e quando ele puxou a maldita lâmina de volta, observem como o sangue de César correu atrás, como saindo às pressas de casa para a rua, para verificar se Brutus havia mesmo batido à porta de modo tão desumano, pois Brutus, como os senhores sabem, era o preferido de César. Julgai, ó deuses, o quanto César o amava. Esse foi o talho mais desumano de todos. Pois quando o nobre César viu Brutus apunhalá-lo, a ingratidão, mais forte que o braço dos traidores, derrotou-o por completo. (…) Almas de bondade, por que choram os senhores, quando tudo que estão vendo é o traje machucado de nosso César? Olhem aqui, ei-lo aqui, ele mesmo, desfigurado, como os senhores podem ver, por traidores”.

 

Figurinos brechtianos

A Itália indicou César Deve Morrer ao Oscar de melhor filme estrangeiro. A Academia de Hollywood o preteriu. Todos sabem do peso do britânico Shakespeare junto aos acadêmicos. Mas sabem também que estes amam filmes de época, de alto orçamento e com figurinos rebuscados e luxuosos. No filme dos Irmãos Taviani, a Roma dos Césares e seus generais, senadores e conspiradores é vista com imenso despojamento.

Os “atores” trajam figurinos modestos, brechtianos. Um pano se faz de manto, uma espada de plástico ajuda a caracterizar este ou aquele personagem. O que importa aos Taviani é o empenho de seus presidiários investidos na função de “atores”. Num texto teatral que discute poder, ambição, traição e lealdade, os detentos encontram experiências intensamente vivenciadas em suas trajetórias criminosas. Quando eles se apoderam dos personagens que vão interpretar, saberemos, por legendas, que estão cumprindo pena por assassinato ou tráfico de droga. Durante seis meses de ensaios, cada “ator” pôde encontrar nos personagens de Shakespeare questões que iluminavam momentos-chave de suas existências.

Quem tem ojeriza a filmes “teatrais” não deve preocupar-se, nem fugir de César Deve Morrer. Afinal, os Taviani construíram narrativa cinematográfica, sintética e poderosa. Um dos presidiários, Cosimo Rega, que interpreta Cássio, diz (no filme): “desde que eu conheci a arte, esta cela se tornou uma prisão”. É isto – sensibilizar os presos, tirá-los, mesmo que temporariamente, da vida bruta de um presídio de segurança máxima – o que desejavam os irmãos cineastas, de trajetória marcada pelo humanismo.

 

Serviço

César Deve Morrer (Cesare Deve Morire), deVittorio e Paolo Taviani. Itália, 2012.

Com detentos da Penitenciária de La Rebibbia.

Duração: 76 minutos.

Júlio César, de William Shakespeare. In: Shakespeare – Obras Escolhidas.

L&PM Editores (Porto Alegre, 2008)

Foto: Divulgação

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