Filme com gravações da escritora com o além estreia na festa literária
Visto muitas vezes com desconfiança e estigmatizado, esse lado misterioso da escritora paulista, que falava com espíritos, dizia ver discos voadores e se guiava pela numerologia, promete ser reabilitado na 16ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), de quarta-feira a domingo (SAIBA TUDO SOBRE A FLIP 2018).
Esse é o centro do documentário “Hilda pede contato”, de Gabriela Greeb, que terá premiere mundial na própria Flip, na quinta-feira, às 21h30m. É o centro também de um livro homônimo, escrito pela diretora. Ambos se baseiam nas fitas deixadas por Hilda, com incríveis 100 horas de gravações das suas experiências. Cada vez menos tabu, o assunto será discutido por Gabriela e pelo diretor de som português Vasco Pimentel na mesa “Performance sonora”, quinta, às 10h.
— Acho que houve, e há ainda, muito preconceito com relação a essas experiências — diz a cineasta. — Como se fosse uma loucura dela. Inclusive, o Mora Fuentes (amigo e pupilo da autora, fundador do Instituto Hilda Hilst, morto em 2009) me pediu para não fazer um filme sobre isso.
“VELHA HIPPIE”, “PORRA LOUCA”
Há certo sentido na preocupação. Por causa de suas crenças, Hilda teria sido vítima de uma “boataria”, acredita Gutemberg Medeiros, um dos principais especialistas na autora. Segundo o pesquisador, que conviveu com ela nos últimos 20 anos de sua vida, criou-se uma visão folclórica de Hilda, resumindo-a a uma “velha hippie”, “porra louca” ou “doida dos cachorros” (por causa dos vários animais que tinha).
— Isso atrapalhou a percepção da obra — diz Medeiros. — Hilda não era louca. O louco não faz o que ela fez. Era uma trabalhadora dedicada. Com a edição cuidadosa de seus livros, nos anos 1990, isso foi mudando. Hoje, o leitor está mais preocupado com texto do que com lendas e mitos.
‘Como tudo na Hilda, esse movimento é um gesto literário e também faz parte da construção de um personagem que ela foi testando ao longo do tempo.’
Mas, afinal, qual é o lugar disso nos estudos sobre Hilda? Críticos, biógrafos e estudiosos continuam divididos. Há quem pense que são detalhes desimportantes, outros veem como parte indissociável da obra. Em todo o caso, é certo que a autora fez do sobrenatural um motor para a criação. Em sua agenda, previa o sucesso do dia, incluindo o trabalho, usando a numerologia. Também associava sua fase mais produtiva, em que escreveu oito peças, à visão de objetos voadores não identificados. Em uma de suas conversas com o além, agradeceu os espíritos pela ajuda em um poema.
A busca pelo desconhecido aumentou em 1966, quando ela se mudou para a Casa do Sol, um sítio isolado em Campinas, onde viveu até sua morte, em 2004. Hoje tombado e transformado no Instituto Hilda Hilst, o lugar ainda guarda uma aura misteriosa. Lá, uma figueira — que segue de pé — ganhou a fama de realizar os desejos dos amigos da escritora. Imersa nas sensações da natureza, Hilda abria-se ao desconhecido, tinha visões e epifanias, revivendo a tradição dos grandes autores panteístas.
O LADO MISTERIOSO DA ESCRITORA HILDA HILST
A fama de “mística” já corria os círculos literários, mas ganhou o grande público em 1979, quando uma reportagem no “Fantástico” revelou seu canal com os mortos. Ela apareceu gravando os sons do rádio, e distinguindo frases coerentes no que só parecia ruído. Segundo a editora e escritora Ana Lima Cecilio, que prepara uma biografia da autora para 2019, o episódio teve um impacto significativo na sua imagem.
— Deu projeção a ela, e muita gente chegou à sua obra em função da reportagem — conta Ana. — Como tudo na Hilda, esse movimento é um gesto literário e também faz parte da construção de um personagem que ela foi testando ao longo do tempo.
Os críticos talvez não acreditassem em Hilda, mas muitos amigos que frequentaram a Casa do Sol naquele período contam ter ouvido mensagens do além.
‘O sobrenatural está em toda a sua obra, carregada de questões existenciais. Ela deu esse pulo no abismo. E a comunicação com os mortos faz parte do questionamento sobre o limite dos homens.’
— Havia marcado de fazer uma visita à Casa do Sol e, na véspera da minha chegada, Hilda ouviu entre os chiados: “Marilda chega amanhã” — conta Marilda Pedroso, amiga de infância da escritora. — Outros ouviram também. Não era só ela.
As experiências seriam parte de uma busca muito maior, que pode ser vista em seus livros, afirma Carla Mühlhaus, estudiosa de Hilda e autora de “Nos vemos em Marduk”, que dialoga com a obra da escritora. Para ela, não se deve confundir essa busca com esoterismo barato.
— Não tem nada de ocultismo ou misticismo, é uma busca por um sentimento de mundo — diz Carla — O sobrenatural está em toda a sua obra, carregada de questões existenciais. Ela deu esse pulo no abismo. E a comunicação com os mortos faz parte do questionamento sobre o limite dos homens. Lembro a epígrafe do romance “A obscena Senhora D”: “Respiro e persigo uma luz de outras vidas, e ainda que a janela se feche, meu pai, é certo que amanhece”.
Não é absurdo ver as gravações da autora como um gesto poético por si só. As transcrições, no livro de Gabriela, compõem um fluxo de consciência de rara beleza. Abusando das metáforas, Hilda invoca “operadores do espaço” e indaga sobre o destino de quem se foi: “Vocês, mortos, vivem?”
— Ela também usava a frase para falar das pessoas em geral, anestesiadas em suas vidinhas, e que queria despertar com um soco — conta Gabriela. — No fundo, diz que nós, vivos, parecemos mortos. Trato isso como metáfora da busca pelo leitor. E, de quebra, pela eternidade da alma.
AO POVO CÓSMICO
“Boa noite para vocês, a experiência foi praticamente nula, eu ouço vocês de longe, mas eu não entendo nada. Obrigada. Um verso único/ Oco de fundos/ Extenso, vermelho-vivo / No túnel dos meus ouvidos: / Sempre comigo. Sempre comigo. // Um verso escuro / De folhas-pontas / De nichos / De negras grutas / A língua excede seu exercício: / Sempre comigo. Sempre comigo. // Um verso-vício / Constância e nojo / Vindo de uns lagos / De malefício. // Amor partido / Torres / Poço-edifício / Um verso único num golpe nítido: / Sempre comigo. Sempre comigo.
Ah eu estava lendo aqui sobre o Victor Tausk. Que vontade de falar com ele. Victor Tausk, será que você não queria falar comigo? Meu nome é Hilda Hilst, hein? Ah, eu acho você tão extraordinário, meu deus. Vontade de ser sua amiga. Alguém aí conhece o Victor Tausk? Ele foi discípulo do Freud. Ele está no mesmo plano que vocês estão. Por favor, alguém conhece o Victor Tausk? Paulo Emilio, Lupe, Osman Lins, Clarice.”
LIVRO REÚNE RETRATOS DE HILDA HILST FEITOS POR PORTUGUÊS FERNANDO LEMOS
25/7 – Quarta-feira
22h – Abertura da Casa
26/7 – Quinta-feira
10h – Oficina com Donizeti Mazonas. “A escrita performática ou o corpo da palavra”: o conto ‘Esboço’”
13h – A Casa do Sol e a família eletiva. Amigos recordam seu dia a dia com Hilda. Participam Olga Bilenky, Leusa Araújo e Jurandy Valença. Mediação de Tainá Müller
18h – Sou inteira poeta. Mesa sobre a poética hilstiana mediada por Luciana Araújo Marques, com Ricardo Domeneck, Laura Erber e Gutemberg Medeiros
27/7 – Sexta-feira
10h – Oficina com Donizeti Mazonas. “O fluxo de consciência”: trechos da novela de Hilda ‘Rútilo Nada’”
13h – Hilda chega ao público. Trajetória da autora e a publicação de suas obras por grandes editoras. Mesa com Ana Lima Cecílio, Gutemberg Medeiros e Alice Sant’Anna, mediados por Paulo Werneck
18h – A prosa de Hilda transbordando. Com mediação de Carola Saavedra, o ator Donizeti Mazonas e o diretor Eduardo Nunes conversam sobre como transpor a prosa de Hilda para o teatro e cinema
20h – Cartas aos pósteros. Intervenção teatral sobre cartas entre Mora Fuentes e Hilda Hilst, com Paula Santiago, Vanessa Del Nigri, Jefferson da Fonseca, Glauce Guima e Ana Cândida Cardoso
28/7 – Sábado
10h – Oficina com Donizeti Mazonas “Polifania hilstiana”. Compreender, a partir da leitura de fragmentos, a novela “O unicórnio”
13h – Vida, obra e legado que habitam entre o pátio e a figueira. Daniel Fuentes e Mauro Munhoz, mediados por Agnaldo Faria, discutem passado, presente e futuro da Casa do Sol
18h – O sagrado e o profano em Hilda Hilst. Eliane Moraes e Zélia Duncan, mediadas por Mirna Quieroz, discutem os grandes temas hilstianos
20h – Lori Lamby. Intervenção teatral com Iara Jamra
29/7 – Domingo
10h – Oficina com Donizeti Mazonas. “A escrita dialógica e o teatro hilstiano”. Leitura e compreensão da peça “O Verdugo”, ganhadora do Prêmio Jabuti
12h30min – Hilda: do silêncio à música.
Versão musical do poema “Roteiro do silêncio”, de 1959
13h – Troca literária de Hilda com Caio Fernando Abreu e José Luis Mora Fuentes. Com Leandro Esteves, Ítalo Moriconi e Jeanne Callegari; mediação de Ana Lima Cecílio.
*Rua Dona Geralda 15, Centro Histórico de Paraty