Flip vai destacar lado místico de Hilda Hilst, como conversas com espíritos

Filme com gravações da escritora com o além estreia na festa literária

Hilda Hilst, aos 29 anos, pelo fotógrafo português Fernando Lemos em 1959 Foto: Fernando Lemos / Divulgação
Hilda Hilst, aos 29 anos, pelo fotógrafo português Fernando Lemos em 1959 – Fernando Lemos / Divulgação

POR BOLÍVAR TORRES

Visto muitas vezes com desconfiança e estigmatizado, esse lado misterioso da escritora paulista, que falava com espíritos, dizia ver discos voadores e se guiava pela numerologia, promete ser reabilitado na 16ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), de quarta-feira a domingo (SAIBA TUDO SOBRE A FLIP 2018).

Esse é o centro do documentário “Hilda pede contato”, de Gabriela Greeb, que terá premiere mundial na própria Flip, na quinta-feira, às 21h30m. É o centro também de um livro homônimo, escrito pela diretora. Ambos se baseiam nas fitas deixadas por Hilda, com incríveis 100 horas de gravações das suas experiências. Cada vez menos tabu, o assunto será discutido por Gabriela e pelo diretor de som português Vasco Pimentel na mesa “Performance sonora”, quinta, às 10h.

— Acho que houve, e há ainda, muito preconceito com relação a essas experiências — diz a cineasta. — Como se fosse uma loucura dela. Inclusive, o Mora Fuentes (amigo e pupilo da autora, fundador do Instituto Hilda Hilst, morto em 2009) me pediu para não fazer um filme sobre isso.

“VELHA HIPPIE”, “PORRA LOUCA”

Há certo sentido na preocupação. Por causa de suas crenças, Hilda teria sido vítima de uma “boataria”, acredita Gutemberg Medeiros, um dos principais especialistas na autora. Segundo o pesquisador, que conviveu com ela nos últimos 20 anos de sua vida, criou-se uma visão folclórica de Hilda, resumindo-a a uma “velha hippie”, “porra louca” ou “doida dos cachorros” (por causa dos vários animais que tinha).

— Isso atrapalhou a percepção da obra — diz Medeiros. — Hilda não era louca. O louco não faz o que ela fez. Era uma trabalhadora dedicada. Com a edição cuidadosa de seus livros, nos anos 1990, isso foi mudando. Hoje, o leitor está mais preocupado com texto do que com lendas e mitos.

‘Como tudo na Hilda, esse movimento é um gesto literário e também faz parte da construção de um personagem que ela foi testando ao longo do tempo.’

– ANA LIMA CECILIOBiógrafa da autora

Mas, afinal, qual é o lugar disso nos estudos sobre Hilda? Críticos, biógrafos e estudiosos continuam divididos. Há quem pense que são detalhes desimportantes, outros veem como parte indissociável da obra. Em todo o caso, é certo que a autora fez do sobrenatural um motor para a criação. Em sua agenda, previa o sucesso do dia, incluindo o trabalho, usando a numerologia. Também associava sua fase mais produtiva, em que escreveu oito peças, à visão de objetos voadores não identificados. Em uma de suas conversas com o além, agradeceu os espíritos pela ajuda em um poema.

A busca pelo desconhecido aumentou em 1966, quando ela se mudou para a Casa do Sol, um sítio isolado em Campinas, onde viveu até sua morte, em 2004. Hoje tombado e transformado no Instituto Hilda Hilst, o lugar ainda guarda uma aura misteriosa. Lá, uma figueira — que segue de pé — ganhou a fama de realizar os desejos dos amigos da escritora. Imersa nas sensações da natureza, Hilda abria-se ao desconhecido, tinha visões e epifanias, revivendo a tradição dos grandes autores panteístas.

O LADO MISTERIOSO DA ESCRITORA HILDA HILST

  • ‘Shippando’ Hilda & Lygia: Hilda dizia ter visto muitos discos voadores, o que sua grande amiga Lygia Fagundes Telles atribuía a “excesso de imaginação poética”. Até que a própria Lygia se surpreendeu com um objeto estranho no céu de sua fazenda e deu o braço a torcer. A amizade entre as duas durou até a morte de HildaFoto: Acervo da família / Lygia Fagundes Telles

  • A figueira ‘mágica’ dos desejos. Hoje tombada, a Casa do Sol é a chácara para onde a escritora se mudou em 1966. Lugar cheio de mistérios, os jardins se mantêm até hoje. Assim como a figueira “mágica”, que, segundo a lenda, realizava desejos dos visitantes. Em 1969, um então jovem Caio F. fez três pedidos: mudar a voz fina, ganhar um prêmio literário e se mudar para o Rio. Teve os três atendidos. É bem verdade que fez exercícios para a voz num gravador.Foto: Divulgação

  • Visita espiritual de Caio F. Hilda contou numa entrevista que o amigo Caio Fernando Abreu (acima, na Casa do Sol, em 1969) apareceu diante dela na hora em que morreu, em 1996: “Ele estava com um cachecol vermelho. Era nossa senha: o vermelho ia significar que estava bem. Abracei o Caio e disse: ‘‘Nossa, como você está bonito! Está jovem!’ Ninguém acredita.”Foto: Autor desconhecido / Acervo Paula Dip

  • Fanática por astrologia. Segundo uma das biógrafas da autora, Ana Lima Cecílio, a agenda de Hilda, taurina com ascendente em Capricórnio, era repleta de cálculos de numerologia. Ela previa se uma data seria boa ou ruim (para os negócios, para a escrita, para o amor) de acordo com os números. O seu acervo na Casa do Sol guarda diversos mapas astrais com definições de sua personalidade e exercícios de futurologia, que ela pedia aos amigos que a visitavam. Publicado em 2016 no livro “Numa hora assim escura”, de Paula Dip, o mapa da foto foi feito por Caio Fernando Abreu, em 1969. Na mesma página, por alguma razão, aparece o telefone de Lygia Fagundes Telles, que era amiga dos dois. O autor gaúcho usou o termo “Trindade da alma” para definir as características astrais de Hilda — o que significa que ela recebia, nas palavras dele, “todas as dores do mundo”.Foto: Caio Fernando Abreu / Acervo familiar

A fama de “mística” já corria os círculos literários, mas ganhou o grande público em 1979, quando uma reportagem no “Fantástico” revelou seu canal com os mortos. Ela apareceu gravando os sons do rádio, e distinguindo frases coerentes no que só parecia ruído. Segundo a editora e escritora Ana Lima Cecilio, que prepara uma biografia da autora para 2019, o episódio teve um impacto significativo na sua imagem.

— Deu projeção a ela, e muita gente chegou à sua obra em função da reportagem — conta Ana. — Como tudo na Hilda, esse movimento é um gesto literário e também faz parte da construção de um personagem que ela foi testando ao longo do tempo.

Os críticos talvez não acreditassem em Hilda, mas muitos amigos que frequentaram a Casa do Sol naquele período contam ter ouvido mensagens do além.

‘O sobrenatural está em toda a sua obra, carregada de questões existenciais. Ela deu esse pulo no abismo. E a comunicação com os mortos faz parte do questionamento sobre o limite dos homens.’

– CARLA MÜHLHAUSPesquisadora e escritora

— Havia marcado de fazer uma visita à Casa do Sol e, na véspera da minha chegada, Hilda ouviu entre os chiados: “Marilda chega amanhã” — conta Marilda Pedroso, amiga de infância da escritora. — Outros ouviram também. Não era só ela.

As experiências seriam parte de uma busca muito maior, que pode ser vista em seus livros, afirma Carla Mühlhaus, estudiosa de Hilda e autora de “Nos vemos em Marduk”, que dialoga com a obra da escritora. Para ela, não se deve confundir essa busca com esoterismo barato.

— Não tem nada de ocultismo ou misticismo, é uma busca por um sentimento de mundo — diz Carla — O sobrenatural está em toda a sua obra, carregada de questões existenciais. Ela deu esse pulo no abismo. E a comunicação com os mortos faz parte do questionamento sobre o limite dos homens. Lembro a epígrafe do romance “A obscena Senhora D”: “Respiro e persigo uma luz de outras vidas, e ainda que a janela se feche, meu pai, é certo que amanhece”.

Não é absurdo ver as gravações da autora como um gesto poético por si só. As transcrições, no livro de Gabriela, compõem um fluxo de consciência de rara beleza. Abusando das metáforas, Hilda invoca “operadores do espaço” e indaga sobre o destino de quem se foi: “Vocês, mortos, vivem?”

— Ela também usava a frase para falar das pessoas em geral, anestesiadas em suas vidinhas, e que queria despertar com um soco — conta Gabriela. — No fundo, diz que nós, vivos, parecemos mortos. Trato isso como metáfora da busca pelo leitor. E, de quebra, pela eternidade da alma.

AO POVO CÓSMICO

“Boa noite para vocês, a experiência foi praticamente nula, eu ouço vocês de longe, mas eu não entendo nada. Obrigada. Um verso único/ Oco de fundos/ Extenso, vermelho-vivo / No túnel dos meus ouvidos: / Sempre comigo. Sempre comigo. // Um verso escuro / De folhas-pontas / De nichos / De negras grutas / A língua excede seu exercício: / Sempre comigo. Sempre comigo. // Um verso-vício / Constância e nojo / Vindo de uns lagos / De malefício. // Amor partido / Torres / Poço-edifício / Um verso único num golpe nítido: / Sempre comigo. Sempre comigo.

Ah eu estava lendo aqui sobre o Victor Tausk. Que vontade de falar com ele. Victor Tausk, será que você não queria falar comigo? Meu nome é Hilda Hilst, hein? Ah, eu acho você tão extraordinário, meu deus. Vontade de ser sua amiga. Alguém aí conhece o Victor Tausk? Ele foi discípulo do Freud. Ele está no mesmo plano que vocês estão. Por favor, alguém conhece o Victor Tausk? Paulo Emilio, Lupe, Osman Lins, Clarice.”

LIVRO REÚNE RETRATOS DE HILDA HILST FEITOS POR PORTUGUÊS FERNANDO LEMOS

  • Hilda Hilst e o fotógrafo português Fernando Lemos se conheceram em 1959, logo depois que ele desembarcou em São Paulo. Foto: Divulgação

  • Lemos tinha 33 anos; ela, 29. O encontro de almas boêmias fez com que Hilda fosse a personagem do primeiro ensaio de Lemos no Brasil.Foto: Divulgação

  • O resultado são imagens singulares reunidas agora no livro ‘Fernando Lemos Hilda Hilst’ (Edições Sesc). Foto: Divulgação

  • Capa de ‘Fernando Lemos Hilda Hilst’, livro de fotografias do português Fernando LemosFoto: Divulgação

  • A obra traz ainda um ensaio do crítico literário Augusto Massi sobre a dupla.Foto: Divulgação

  • Além da programação de lançamento durante a Flip, as imagens do livro estarão em duas exposições em Paraty, na Praça Aberta (Areal do Pontal, onde foi a Tenda dos Autores em outros anos de Flip) e na Casa Publishnews (Rua Comendador José Luiz 274)Foto: Divulgação

  • Hilda Hilst, aos 29 anos, em fotografia do livro de Fernando LemosFoto: Divulgação

25/7 – Quarta-feira

22h – Abertura da Casa

26/7 – Quinta-feira

10h – Oficina com Donizeti Mazonas. “A escrita performática ou o corpo da palavra”: o conto ‘Esboço’”

13h – A Casa do Sol e a família eletiva. Amigos recordam seu dia a dia com Hilda. Participam Olga Bilenky, Leusa Araújo e Jurandy Valença. Mediação de Tainá Müller

18h – Sou inteira poeta. Mesa sobre a poética hilstiana mediada por Luciana Araújo Marques, com Ricardo Domeneck, Laura Erber e Gutemberg Medeiros

27/7 – Sexta-feira

10h – Oficina com Donizeti Mazonas. “O fluxo de consciência”: trechos da novela de Hilda ‘Rútilo Nada’”

13h – Hilda chega ao público. Trajetória da autora e a publicação de suas obras por grandes editoras. Mesa com Ana Lima Cecílio, Gutemberg Medeiros e Alice Sant’Anna, mediados por Paulo Werneck

18h – A prosa de Hilda transbordando. Com mediação de Carola Saavedra, o ator Donizeti Mazonas e o diretor Eduardo Nunes conversam sobre como transpor a prosa de Hilda para o teatro e cinema

20h – Cartas aos pósteros. Intervenção teatral sobre cartas entre Mora Fuentes e Hilda Hilst, com Paula Santiago, Vanessa Del Nigri, Jefferson da Fonseca, Glauce Guima e Ana Cândida Cardoso

28/7 – Sábado

10h – Oficina com Donizeti Mazonas “Polifania hilstiana”. Compreender, a partir da leitura de fragmentos, a novela “O unicórnio”

13h – Vida, obra e legado que habitam entre o pátio e a figueira. Daniel Fuentes e Mauro Munhoz, mediados por Agnaldo Faria, discutem passado, presente e futuro da Casa do Sol

18h – O sagrado e o profano em Hilda Hilst. Eliane Moraes e Zélia Duncan, mediadas por Mirna Quieroz, discutem os grandes temas hilstianos

20h – Lori Lamby. Intervenção teatral com Iara Jamra

29/7 – Domingo

10h – Oficina com Donizeti Mazonas. “A escrita dialógica e o teatro hilstiano”. Leitura e compreensão da peça “O Verdugo”, ganhadora do Prêmio Jabuti

12h30min – Hilda: do silêncio à música.

Versão musical do poema “Roteiro do silêncio”, de 1959

13h – Troca literária de Hilda com Caio Fernando Abreu e José Luis Mora Fuentes. Com Leandro Esteves, Ítalo Moriconi e Jeanne Callegari; mediação de Ana Lima Cecílio.

*Rua Dona Geralda 15, Centro Histórico de Paraty

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *