Entrevista do domingo com Marcelo Tognozzi – A carta Magna Brasileira está virando Constituição de conveniência. Jornal O PODER

 Jornalista Marcelo Tognozzi

Jornal O PODER

O Poder – O senhor levantou, no Poder360, o tema Constituição de conveniência. A atual, não nasceu conveniente?

MT –
Quem estava no plenário da Câmara dos Deputados naquele 5 de outubro de 1988, não escapou da emoção ao assistir o discurso do velho Ulisses Guimarães durante a promulgação da Constituição que ele chamou de cidadã. Chegava ao fim um trabalho de quase 2 anos, embalado pela energia de milhões de brasileiros que, pela segunda vez em 42 anos, ganharam uma Constituição filha do voto popular.

O Poder – Qual a diferença das demais?
MT –
As outras todas, tanto a do Império quanto a de 1891, 1934, 1937 e a de 1967, foram feitas sem ou com baixa participação popular. Destas 4, a única a tramitar em clima amplamente democrático foi a 1934, porém com forte influência do poder econômico. Durou: apenas 4 anos. Foi substituída pela Constituição de 1937, a famosa polaca, escrita pelo jurista Francisco Campos, o mesmo que, 30 anos depois, seria convocado para redigir a Constituição de 1967.
Campos era um especialista em constituições de ditaduras. Trabalhou para Getúlio Vargas em 1937 e, com igual entusiasmo, serviu aos generais do regime militar inimigos mortais do varguismo. Ambas eram constituições de conveniência, feitas para dar maquiagem legal ao autoritarismo que as sustentava.

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O Poder – A quem servem as “Constituições de conveniência”?

MT –
Servem a poucos. Em 1823, d. Pedro 1º dissolveu a Constituinte e ele mesmo escreveu a constituição que vigorou a partir do dia 25 de março de 1824. O imperador fez da nossa 1ª constituição uma lei ao seu serviço. A nossa atual Constituição já não é mais aquela do discurso de Ulisses Guimarães de quase 36 anos atrás. Desde que entrou em vigor ela foi modificada nada menos que 128 vezes (excluídas as emendas da revisão constitucional e as dos tratados internacionais com status de emenda). Apenas em 2022 foram 14 emendas aprovadas, boa parte delas para servir a interesses, ou à conveniência, de grupos específicos como o piso salarial para agentes de saúde, isensção de IPTU para igrejas, financiamento do piso salarial da enfermagem ou autorizações para gastos extras.

O Poder – Por que isso?

MT –
Quem se der ao trabalho de analisar a tempestade de emendas que nestes últimos anos desabou sobre nossa Constituição vai se deparar com inúmeras iniciativas que poderiam estar em leis ordinárias ao invés de “constitucionalizadas”. Transformaram a Constituição num aglomerado de puxadinhos, cada um destinado a servir diferentes senhores.
Uma vez desvirginada pelas primeiras emendas, a Constituição passou a ser instrerpretada não pelo que está na sua letra, mas pelo que imaginam os ministros do Supremo Tribunal Federal nas suas conveniências de ocasião. Neste momento em que Supremo e Executivo governam em coalisão, o pudor foi mandado às favas e a força prevalece sobre o bom senso. A ponto de o presidente da República pedir ao Supremo que declare insconstitucional a desoneração da folha de pagamento votada e aprovada pelo Congresso. E, claro, foi atendido por decisão monocrática do ministro Cristiano Zanin.
O presidente apenas fez o que os partidos políticos, especialmente aqueles pequenos, barulhentos e mais bem articulados, têm feito nos últimos anos ao judicializar decisões do Congresso e ganhar no tapetão. Como se a Justiça estivesse acima do Legislativo, um poder legitimado pelo voto popular.

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O Poder – A judicialização não é um caminho constitucional?

MT –
Acolher a judicialização é uma exibição de poder e força, um constrangimento e uma humilhação para o Congresso. Vivemos a era da conveniência. Temos uma democracia de conveniência, na qual a contestação e o contraditório se tornaram inconveniêntes, assim como o jornalismo investigativo e imparcial e a liberdade de expressão, resumida numa frase do genial Millor Fernandes: “livre pensar é só pensar”. O próprio conceito de democracia foi reescrito pela conveniência. A mesma que hoje impõe o controle total do cidadão, a formatação da cidadania, e, nesta toada, em pouco tempo não existirá mais papel moeda. Muita gente ainda não acordou para isso, mas não será conveniente para qualquer cidadão possuir dinheiro vivo, irrastreável. Este direito inconveniente será banido.

O Poder – Mas isso não é progresso? Tendência mundial?

MR –
Virou um monstrengo a Constituição de 1988. Monstrengo das trevas do fim do mundo, igual ao do poema de Fernando Pessoa. Remendada, desfigurada, repleta de puxadinhos, interpretada conforme as conveniências do momento, deixou de ser o guia da Nação. Ela, que nasceu cidadã, se transformou em súdita de um punhado de poderosos.

O Poder – Obrigado.

MT – Aqui, âs ordens, sempre que a agenda permitir. Aqui, como dizia São Pedro a Irene no Céu, no poema de Manoel Bandeira, vocês não precisam pedir licença. Bom domingo.

O Poder – Bem, sua conversa é para deixar qualquer leitor reflexivo. Bom domingo.

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