O diplomata e poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999), que tinha dores de cabeça crônicas, em seu “Poema de Desintoxicação”, fala sobre o que se passa com ele, quando é apenas o vulto de um homem dormindo.
POEMA DE DESINTOXICAÇÃO
João Cabral de Melo Neto
Em densas noites
com medo de tudo:
de um anjo que é cego
de um anjo que é mudo.
Raízes de árvores
enlaçam-me os sonhos
no ar sem aves
vagando tristonhos.
Eu penso o poema
da face sonhada,
metade de flor
metade apagada.
O poema inquieta
o papel e a sala.
Ante a face sonhada
o vazio se cala.
Ó face sonhada
de um silêncio de lua,
na noite da lâmpada
pressinto a tua.
Ó nascidas manhãs
que uma fada vai rindo,
sou o vulto longínquo
de um homem dormindo.