Em ‘Bacurau’, Kleber vira um Tarantino do faroeste pernambucano

O que mais choca no filme é a carnificina moral que já vem instalada no HD das almas, comandos demiúrgicos de algum blog de ódio

Por ARNALDO BLOCH – O Globo

Há um objeto não identificado pairando sobre nós. Não é umacanção de amor no espaço sideral de uma cidade do interior . Nem um iê-iê-iê romântico . É um objeto tosco, com jeito de vintage-scifi , mas suas antenas estão ligadas nosearphones bem terrenos de gênios do mal que nunca ouviram Gal e, se ouviram, não entenderam.

O parágrafo anterior, citando os versos de Caetano na abertura de “Bacurau” (de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles), é uma das possíveis sinopses da hiperbólica mensagem do filme, obra mais-que-prima, obra-irmã, família-brasileira-mundial, obra mãe-natureza e pai-ancestral, obra juventude-atenta. Que, depois de incensada e premiada em Cannes, pousa nos cinemas nacionais em pré-estreias abertas ao público dia 17 e, depois, dia 29, pra valer.

Em “Bacurau”, Kleber vira um belo de um Tarantino do faroeste pernambucano, só que melhor, social sem ranço, cara pintada de sangue vivo. Fala de uma resistência sã em essência e de uma vingança que não é movida pela pura crueldade, ainda que tenha lá seus requintes, pois ninguém é de ferro depois de levar bala de traíra.

Vingança que não é do indivíduo recalcado que devasta tudo para devolver a mágoa, mas de um coletivo cansado de guerra, com um olho na História e outro na paz, e não na paúra purificadora de uma tribo louca por exterminar a diferença. É preciso estar atento e forte, avisam, de novo, os baianos sertanos e praianos . Não temos tempo de temer a morte. Mas tememos. E queremos viver. Nem tudo é divino e maravilhoso, mas tem do bom pra geral.

O que mais choca em “Bacurau” não é a carnificina controlada, de videogame, fúria represada e solta pra cima dos humildes: isso, a gente já vê no dia a dia da urbe, dos morros, dos campos e das florestas. É a carnificina moral que já vem instalada no HD das almas, comandos demiúrgicos de algum blog de ódio. Dói ver, mesmo num prudente futurismo, como os vilões agem parecido com gente que a gente já vê, às vezes na mesa do lado do bar.

Dói reconhecer, em certas atitudes embedded no vilão, uns vícios da cidade, de berço, que podem muito bem já ter dourado o gestual de quem vê. Um sentimento comum nos filmes de Kleber mas, desta vez, injetado na veia, pelo uso de uma plataforma de linguagem muito cara a Hollywood: o western, com todos os seus clichês aqui revertidos, projetados numa distopia nem tão longe, na verdade, próxima pra burro.

O devido deslocamento espaço-temporal protege a reflexão gerada contra a estupidez dos que poderiam acusar o diretor, se o filme se passasse no presente, de ter viajado. A viagem, aqui, é a da inteligência, da extrema lucidez. Quem não embarcar, pode até estar, ainda, nas diligências da História, mas rumando, a passos decididos e mesmo conscientes, para o abismo.

Nota de pé: nos créditos, a projeção de “Bacurau” avisa que o filme gerou 800 empregos além de integrar a cultura nacional, a gente brasileira e, também, a sua indústria. Em vias de desmonte dos mecanismos de incentivo à criação livre, não precisa ser ficção para a gente saber o fim deste outro filme em que está se transformando a realidade que cerca, sem distinção, todo o povo do Brasil.

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