Por Cícero Belmar – Jornalista, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras

O estudante de Direito matou, a golpes de machado, a velha agiota que o explorava. Achava que, dessa forma, estaria resolvendo os problemas financeiros. Sem dramas de consciência, vai deixar o local do crime, mas os imprevistos acontecem: a irmã da vítima, uma pessoa boa e ingênua, chega e o surpreende. Para não denunciá-lo, ele a assassina também.

Esse resumo é o começo do clássico da literatura mundial, Crime e Castigo, do russo Dostoiévski. O livro, que para mim é emblemático neste momento em que a crueldade está se naturalizando no mundo, narra a história de Raskólnikov, o estudante. Para além do acontecimento, a obra retrata a racionalização do crime, o que vem se tornando comum hoje em dia. O personagem fica tentando se justificar a si mesmo, pelas mortes que cometeu, como se não tivesse consciência do mal que praticou.

Fiquei pensando em Crime e Castigo e na banalização da violência diante de dois fatos, nos últimos dias, um em São Paulo e outro na Região Metropolitana do Recife. O primeiro caso ocorreu quando um adolescente de 16 anos confessou ter matado os pais, além da irmã, no dia 17, na Zona Oeste de São Paulo. O garoto estava com raiva porque os pais retiraram dele o computador e o celular. Matou a tiros. Não demonstrou culpa ou arrependimento, mas ficou perplexo ao ser abordado pela polícia. Não esperava ser preso.

Outro crime, que me deu essa sensação de que a prática de atrocidades está transformando a humanidade em monstros, ocorreu em Jaboatão dos Guararapes, vizinha ao Recife, e foi descoberto no dia 22. Uma mulher de 28 anos matou a filha de dez meses e colocou o corpo dentro de um freezer, para ninguém sentir o mau cheiro, quando entrasse em decomposição.

Os dias passaram sem ela demonstrar nenhum trauma, nenhuma dor. Ela matou porque a criança dava trabalho. A polícia terminou descobrindo que a mãe deu, à bebê, um veneno chamado chumbinho, para ratos. Em vez de arrependimento, ela só tinha medo de que alguém descobrisse o crime e ela mofasse na cadeia. Tanto o adolescente quanto a mulher repetem o mesmo perfil do personagem Raskólnikov: o medo do castigo é maior do que a consciência do mal que praticaram.

Em sua ficção, Dostoiévski vai fundo na alma humana e no mundo real. Ele mostrou que muitas vezes não é a consciência quem determina o que vamos fazer. Isso depende do que estamos vivendo. Ao serem presos, os assassinos de São Paulo e de Jaboatão dos Guararapes confessaram o crime, sem demonstrar remorsos. E ainda se justificaram.

Para eles, é como se a vida dos outros não tivesse importância alguma. Também não achavam nada de mais o mal que estavam fazendo aos outros. O que valeu na hora do crime foi fazer o que “deu na telha”. Eles realizaram o que a crueldade determinava, prevalecendo a força da frustração e da raiva. Mataram porque tiveram vontade. Sem reflexão alguma, agiram do jeito que quiseram, com senso zero de justiça e misericórdia.

Mas esses não são os únicos casos terríveis cometidos nesse brasilzão. São apenas os dois que ganharam repercussão nacional, na mídia, porque denunciam, em si, a superficialização da vida. Eles mostram o quanto a vida humana está sendo tratada como algo descartável e banal.

Isso é o contrário da humanidade que temos em comum. Do sentimento e da capacidade de agir com respeito, que aproxima uma pessoa da outra. Quem dá sentindo à vida somos nós mesmos e nossas escolhas. Quando foi escrito em 1866, o livro Crime e Castigo registrou na literatura o que hoje em dia é cada vez mais corriqueiro: estamos nos desumanizando, permitindo que o nosso instinto animal, que sempre estará na nossa natureza, prevaleça sobre nossas inteligência e capacidade de refletir.