Paulina Chiziane, que veio à Bienal do Livro, reforça laço entre Brasil e África

Vencedora do prêmio Camões, autora moçambicana fala do seu povo e combate os males da escravidão e do patriarcado

A 26ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo trouxe ao Brasil a escritora moçambicana Paulina Chiziane, ganhadora do prestigiado prêmio Camões, uma das mais importantes honrarias da literatura mundial.

Eu tive a honra de estar com ela em duas ocasiões. Somos amigos e “conversadores”, como ela gosta de dizer, já há um bom tempo. Na maioria das vezes que ela vem ao Brasil –seja no Rio de Janeiro, seja em São Paulo– nos encontramos para um dedo de prosa. Desta vez, não foi diferente.

Fotografia de uma mulher negra de casaco marrom e cabelos brancos ao lado de um homem negro de cabelos negros e um terno azul, sentados numa mesa de restaurante
Escritora moçambicana Paulina Chiziane ao lado de Tom Farias – Arquivo Pessoal

Tom Farias – Folha de São Paulo

Jornalista e escritor, é autor de ‘Carolina, uma Biografia’ e do romance ‘A Bolha’

O que ocorre é que, a cada vez que nos encontramos, nossa conversa se torna ainda mais especial e divertida. Paulina é uma mulher fantástica, com uma energia muito especial. Ela não tem retórica, sua mensagem é precisa, e, além de tudo, universal. Quando diz alguma coisa, ela fala de si, do povo moçambicano, fala da herança herdada do colonialismo do seu país, fala da diáspora, dos males da escravidão e do patriarcado. É um encantamento.

Não posso dizer que a admiro sem dizer que sou grande fã. Assim se manifesta meu coração toda vez que a encontro, que nos abraçamos e nos pomos a conversar sobre os assuntos de África, no caso de Moçambique, e do Brasil –em geral, os abusos políticos e coloniais de parte a parte. Temos opiniões comuns sobre os nossos países, sobre questões que vão da violência a questões de gêneros.

Enfim, na sua passagem agora por São Paulo, onde ela cumpriu uma exaustiva agenda de compromissos, certamente como a estrela maior da Bienal do Livro, sob os cuidados do Instituto Camões, Paulina Chiziane tirou aquele tempinho para nos vermos e papearmos um pouco, “jogar conversa fora”, como se diz aqui entre nós.

Paulina ama uma conversa. Em sua casa, ela se despoja de toda pompa e circunstância que o status de importante escritora lhe proporciona, troca os sapatos de couro por chinelos de dedo, do tipo rasteirinha, para relaxar e ficar bem à vontade. Eu a vejo entre as pessoas, seja homens, mulheres ou crianças, sempre falando baixinho. De certa forma, ouve mais do que fala.

Nos seus dias de Bienal, acompanhada de Fermina, sua neta, ela ia se arrastando pelas pessoas, com roupas coloridas e às vezes de turbante, provocando admiração e curiosidade. As pessoas celebram sua presença, como uma ancestral que nos traz sempre mensagens e ensinamentos.

Conceição Evaristo diz que as escritoras pretas não dão autógrafos, dão consultas. É o caso de Paulina Chiziane. Ao lado dela, as pessoas não se contentam apenas em obter seu livro e sua assinatura –querem uma fala, uma escuta, um olhar, um posicionamento. É lindo.

Foi assim nesses seus dias por aqui, antes de embarcar para a cidade de Salvador, onde cumprirá outros compromissos antes de voltar para o seu país.

No histórico bairro do Bexiga, numa tradicional cantina italiana, no jantar oferecido pelo reitor José Vicente, da Universidade Zumbi dos Palmares, a escritora de romances como “Baladas de Amor ao Vento” e, o mais recente, relançado no Brasil, “Niketche: Uma História de Poligamia”, talvez o mais importante dos seus livros, Paulina pôs-se a contar histórias e, sempre divertida, cantarolou músicas que lembravam o regionalismo do país europeu e sambas bem populares, como os da escola local, a Vai-Vai.

Os encontros com Paulina Chiziane são sempre recheados de causos sobre sua gente e seu fazer literário. Aliás, ela não gosta muito de ser chamada de romancista, mais sim de contadora de histórias. Na verdade, é o que ela faz o tempo todo, abrindo sempre aquele largo sorriso, com o rosto sempre iluminado, jovial, de quem sempre dá as boas-vindas para quem chega perto dela.

Solícita e muito afável, Paulina parece uma mulher do mundo, carregada de diplomacia, ternura e sabedoria nas falas e nos gestos. Mas não pensemos que ela é ingênua ou frágil. Por debaixo da sua pele, existe uma leoa pronta para defender seu território, seu povo e sua cultura.

Na noite que estivemos juntos, no início desta semana, ela contou causos de si e do seu país. Falou-me do quanto ela gosta do Brasil, das gentes simples, dos lugares por onde a chamam para visitar e dos assuntos relacionados à literatura e a África.

Desta vez contou histórias de quando foi à cidade de Salvador e viu uma baiana preparando um acarajé. Quis provar da famosa iguaria. Quando a baiana perguntou se queria o acarajé bem quentinho, respondeu: “Ora, tão quente como está nessa fritura”. Rindo muito, ela disse que foi obrigada a beber, na hora, quase dois litros de água. Acarajé quente na Bahia, especialmente em Salvador, é aquele bem apimentado, e ela não sabia.

Quis saber dela se há um acarajé também em Moçambique. Ela disse que sim, e que o mais próximo se chama badjia. Trata-se de uma iguaria feita de farinha de feijão, ou seja, feijão socado, e frito no óleo fervente, como os salgadinhos, muito populares pelas ruas de lá.

Paulina Chiziane nos deixa sempre uma boa impressão sobre os elos e a cordialidade entre o Brasil e a África. Que não se demore muito a voltar, irmã africana. Você é sempre muito bem-vinda.