Conflito com Bolsonaro faz Supremo mudar “entendimento” sobre liberdade de expressão

As consequências do consequencialismo - Blog do Ari Cunha

Charge do Duke (O Tempo)

Matheus Teixeira e José Marques
Folha

A abertura de uma ação contra o senador Jorge Kajuru (Podemos-GO) sob acusação de injúria e difamação mostra como julgamentos no STF (Supremo Tribunal Federal) têm sido influenciados pelo conflito deflagrado entre o presidente Jair Bolsonaro (PL) e o Poder Judiciário.

No início de maio, a Segunda Turma do tribunal decidiu pelo prosseguimento da investigação contra o senador, na contramão do entendimento do ex-relator do caso e até mesmo de opiniões antigas da corte sobre os limites da liberdade de expressão de outros políticos.

Kajuru afirmou que o ex-deputado Alexandre Baldy (PP-GO) “integra uma quadrilha” e que o senador Vanderlan Cardoso (PSD-GO) é “pateta bilionário”, “inútil” e “idiota incompetente”. Também disse que o senador usaria o mandato para fazer negócio.

CONTRADIÇÕES – A decisão de abrir ação contra Kajuru teve o apoio dos ministros Gilmar Mendes, Edson Fachin e Ricardo Lewandowski. Mas em casos anteriores, por exemplo, a corte negou tornar o então deputado Jean Wyllys (PT-RJ) réu por chamar o colega de Câmara João Rodrigues (PSD-SC) de “ladrão, bandido, desonesto, estúpido e fascista”.

Da mesma forma, rejeitou pedido do filho do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para que o deputado Domingos Sávio (PSDB-MG) respondesse a processo por ter dito que “a roubalheira na Petrobras começou lá no governo Lula e o Lulinha filho dele é um dos homens mais ricos do Brasil hoje”.

De forma unânime, o tribunal ainda rejeitou em 2020 queixa-crime contra o deputado Herculano Passos (Republicanos-SP), que chamou em live um prefeito de “corrupto”, “covarde”, “vingativo”, “mentiroso”, “perseguidor” e “frouxo”.

CONTEXTO POLÍTICO – No caso do deputado Passos, o Supremo afirmou que o parlamentar agiu em seu perfil oficial com falas de “clara oposição e descontentamento com o atual prefeito, devendo, por isso, ser entendidas no contexto de entrave político”.

Inicialmente, parecia que o caso de Kajuru teria o mesmo desfecho. A PGR (Procuradoria-Geral da República) se manifestou pelo arquivamento da queixa-crime sob o argumento de que seria o mais condizente com a jurisprudência da corte.

O então relator da ação, o ministro Celso de Mello, decano do Supremo durante 13 anos, também afirmou que o arquivamento do processo seria a única solução que respeitaria o entendimento majoritário do STF sobre liberdade de expressão e imunidade parlamentar.

JURISPRUDÊNCIA – “Com apoio na jurisprudência prevalecente nesta Corte, e acolhendo, ainda, o parecer da douta Procuradoria-Geral da República, julgo extinto este processo de índole penal”, concluiu.

O magistrado defendeu que o comportamento de Kajuru “subsume-se, inteiramente, ao âmbito da proteção constitucional fundada na garantia da imunidade parlamentar material”.

Segundo Celso de Mello, é necessário reconhecer que os ataques a Alexandre Baldy e ao senador Vanderlan Cardoso compunham o contexto de “antagonismo político” entre os envolvidos em Goiás.

SEGUNDA TURMA – Os advogados, porém, recorreram da decisão e o processo foi submetido à Segunda Turma. Celso de Mello reiterou sua posição pelo arquivamento do caso, mas o ministro Gilmar Mendes pediu vista (mais tempo para analisar o caso).

Ele liberou a ação para discussão do colegiado apenas um ano e meio depois, quando Celso já havia se aposentado. Gilmar, então, votou para dar prosseguimento à investigação, o que pode resultar na condenação do senador.

O magistrado foi acompanhado por Fachin e Lewandowski. O ministro André Mendonça foi o único a votar pelo arquivamento do caso. Ele entendeu que os ataques devem ser protegidos pelas garantias previstas na Constituição aos detentores de mandato.

DISSE MENDONÇA – “Importante notar que as falas do querelado [Kajuru], conforme se depreende do contexto em que manifestadas, se referem a claros adversários políticos no mesmo estado, Goiás”, disse.

Na visão de especialistas do tema e na avaliação reservada de interlocutores no Supremo, a reviravolta no caso está ligada ao contexto político, em que a corte passou a se defender de ataques e ameaças de aliados de Bolsonaro.

O professor e doutor em Direito Constitucional Ademar Borges acredita que o desfecho do caso teve influência do cenário de briga entre os Poderes e de ações do STF para se proteger das investidas da militância ligada ao chefe do Executivo.

SINAL DE ALERTA – “A ascensão vertiginosa de ataques discursivos ao funcionamento das instituições democráticas praticados por parlamentares federais acendeu um sinal de alerta sobre o próprio sentido da imunidade parlamentar”, afirma.

O advogado da União Guilherme Florentino, mestre em direito público com dissertação sobre imunidade parlamentar, também vê um vínculo entre o desfecho do caso Kajuru e a tensão entre as instituições.

Ele afirma que o país nunca viveu uma tensão do nível atual desde a redemocratização, o que tem levado o Supremo a se posicionar “com viés de defesa institucional muito forte”. “Acho que os ministros acabam adotando postura como essa, tendo em vista que poderia abrir espaço para ataques à corte”, diz.

GILMAR INSISTE – Para embasar seu voto, Gilmar Mendes afirmou que era necessário abrir a ação penal porque os ataques de Kajuru não estavam dentro de um contexto político.

“Enquanto críticas que se refiram a temas ou aos limites de um debate de interesse público são comumente consideradas como abrangidas pela liberdade de expressão, qualquer ofensa descontextualizada do debate e que descambe para a simples agressão ou violência verbal pode ser considerada como passível de sanção cível ou criminal”, disse.

Borges e Florentino ressalvam, entretanto, que não é possível concluir que o julgamento representa uma mudança na jurisprudência da corte. Eles destacam que se trata de apenas um processo e de um julgamento da Segunda Turma, não do plenário.

IMPONDO RESTRIÇÕES – Criminalistas, por sua vez, apontam que o Supremo Tribunal Federal tem gradualmente firmado a posição de que a liberdade de expressão não é ampla e irrestrita e encontra limites na honra e imagem de quem é ofendido.

“A mesma premissa deve prevalecer quanto à imunidade parlamentar, que não pode servir de escudo à ofensa pura e simples. Esta certamente não encontra respaldo no exercício da função parlamentar”, diz o advogado criminalista Diego Henrique.

Mestre em processo penal pela PUC-SP, Daniel Bialski afirma que o julgamento de Daniel Silveira aponta uma tendência do Supremo de “colocar limites” a respeito de falas de parlamentares. E o criminalista Alexander Barroso, articulador de grupos de advogados evangélicos, vê no momento atual, com o julgamento dos casos Silveira e Kajuru, uma flexibilização da jurisprudência da corte,