Prédio do DP “sangra em praça pública”

Do JC Online

Um dos prédios mais importantes do Recife sangra em praça pública. Comprado pelo Governo do Estado em 2004, o antigo edifício do jornal “Diario de Pernambuco”, na Praça da Independência, bairro de Santo Antônio, assusta pela situação de deterioração e vandalismo. Um triste espelho da realidade do Centro. As suas portas estão arrombadas, deixando o espaço vulnerável a invasões. Suas entradas acumulam uma mistura de entulho, lixo e excrementos de pessoas em situação de rua e dependentes químicos. O prédio tornou-se um depósito das mazelas que a sociedade não quer ver. Isso porque o poder público finge não vê-lo.

Pessoas que trabalham no entorno do prédio, que teve processo de tombamento aprovado em 2018, já se acostumaram com as invasões quase diárias. “Eu já vi gente levando um pouco de tudo: pedaços do telhado, fiação, privada de banheiro, pia e relógio. Até as portas estão levando. Não deve ter mais nada ai dentro”, diz Luciano Francisco, que tem um fiteiro ao lado da construção há mais de 10 anos. Ele relembra que também viu pessoas levando carros de mão com entulho para dentro do prédio durante a noite.

Francisco e um outro comerciante, que não quis ser identificado, contam que um homicídio foi realizado no prédio em novembro. De acordo com eles, o corpo de um homem teria sido esfaqueado e jogado para fora do edifício. A Polícia Civil confirmou o “homicídio de um homem não identificado, ocorrido na tarde de 11 de novembro na Praça da Independência”. O registro, no entanto, não cita o prédio. “A vítima foi encontrada com golpes de arma branca. De acordo com populares, a vítima teve uma discussão com outro homem que a golpeou. Caso segue em investigação”.

Em setembro de 2020, um incêndio tomou conta do palacete. A fumaça foi vista no começo de uma manhã e a equipe do Corpo de Bombeiros informou que o foco das chamas era em uma sala na parte interna, onde foi encontrada madeira.

Quem entra no imóvel se depara com excesso de entulhos e lixo espalhado por toda parte. Mal é possível andar pelo lugar

O “Diario de Pernambuco” chegou à Praça da Independência em 1903, quando tinha 78 anos. A construção foi uma iniciativa do seu dono na época, o conselheiro Francisco de Assis Rosa e Silva, figura de forte influência política e que hoje dá nome à avenida na Zona Norte da capital. Inspirado pelas mudanças urbanísticas do Rio de Janeiro, onde viveu e atuou como vice-presidente da República Velha, Rosa e Silva solicitou a construção de um prédio no estilo eclético e com três andares, algo então incomum para a cidade.

Logo a edificação foi palco de inúmeros acontecimentos políticos e históricos. Ainda em 1911, uma revolta popular acometeu seu entorno quando Rosa e Silva fraudou a eleição estadual a seu favor e deu a vitória na capa do periódico. Em 1945, foi lá que a polícia do Estado Novo, fase mais rígida do governo de Getúlio Vargas, matou o estudante de direito Demócrito de Souza Filho e o carvoeiro Manoel Elias, acontecimento que foi propulsor da redemocratização em todo o Brasil. Em 1968, a Rainha Elizabeth II visitou o Recife e o roteiro contou com uma passagem pelo edifício.

Arquivo Público

O veículo de comunicação deixou o espaço em 2004, quando a gestão de Jarbas Vasconcelos comprou o prédio. Os decretos de desapropriação foram publicados no Diário Oficial em 24 de fevereiro e 4 de março daquele ano, informando que o prédio estava sendo incorporado ao patrimônio da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe). Um dos artigos do segundo decreto explicava que “os imóveis inscritos serão destinados à instalação do Novo Arquivo Público do Estado de Pernambuco”.

Em 13 de março de 2004, um despacho da Quarta Vara da Fazenda Pública da Comarca do Recife autorizou um pagamento de valor de R$ 2 milhões pelo imóvel, “em face da declaração de urgência, se de dar início à implantação do novo Arquivo Público, obra de indiscutível alcance social e cultural para o Estado.” Em 21 de abril, a Fundarpe chegou a contratar uma empresa de engenharia para execução de serviços nesse prédio, entre outros edifícios históricos, num valor de R$ 14.490.

Apesar da “urgência” justificada na desapropriação, o projeto do arquivo público não avançou. Já na gestão de Eduardo Campos (PSB), em abril de 2011, ainda é possível encontrar no Diário Oficial registros sobre o equipamento arquivístico. “Até o final deste mês, as instalações do Arquivo Público serão transferidas para o antigo prédio do Diario de Pernambuco”, disse o então o diretor da entidade, Pedro Moura, na época. A transferência nunca ocorreu e o Arquivo Público segue em Santo Antônio.

DIVULGAÇÃO
Proposta do escritório Estevan Barin Moreira-ME, do Rio Grande do Sul, é a vencedora do Concurso Porto Digital de Arquitetura para o Diario de Pernambuco

Porto Digital

No final de 2014, quando João Lyra Neto (PSDB) era o governador, o Estado anunciou que iria repassar o prédio em uma concessão para o Porto Digital. Em 2016, o parque tecnológico lançou um concurso nacional para que escritórios de arquitetura enviassem projetos para uma restauração. O vencedor foi o escritório Estevan Barin Moreira-ME, do Rio Grande do Sul (foto).

Além da reforma do casarão histórico, o projeto vencedor previa a construção de um edifício empresarial anexo. De acordo com informações da imprensa na época, a obra estaria orçada em R$ 28 milhões. Essa concessão, que finalmente parecia dar fim ao abandono do prédio, também nunca foi concluída.

Especialistas condenam abandono

O abandono do antigo prédio do Diario de Pernambuco é lamentado por autoridades urbanísticas. Reinaldo Carneiro Leão, primeiro secretário do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, reforça que o prédio é um símbolo na história do estado.

“Além de todos os acontecimentos políticos, esse edifício foi um marco da arquitetura eclética. Ele tinha aquele carrilhão, um relógio que tocava e que por muito tempo servia de orientação para as pessoas da área. É muito doloroso saber que aquele edifício está sendo invadido e destruído. É uma coisa terrível o que está acontecendo. É um descaso muito grande. Esse é um bem público”, reclama.

Projeto do arquivo público não avançou

O professor da UFPE Marcos Galindo, coordenador científico do Laboratório de Tecnologia do Conhecimento, onde desenvolve o projeto Rede Memorial de Pernambuco, diz que o seu valor está para além da arquitetura. “Não se trata apenas do abandono de uma construção, mas sim de uma memória. Isso passa para outra dimensão. Isso diz muito de como o Governo do Estado e a política tratam a memória e o que a memória representa dentro do aparelho do estado. Contudo, também temos que lembrar que o estado somos nós. Isso está acontecendo porque a sociedade está vendo aquilo todos os dias e não se manifesta”, diz.

Galindo ainda lança uma reflexão acerca da preservação da memória. “A gente não guarda memória para a gente, mas para os nossos filhos, netos e quem vir adiante. Qual será o impacto disso tudo para o futuro?”, questiona. “Uma sociedade com síndrome de Alzheimer é como uma pessoa que perde conexões com o mundo que o rodeia. Uma sociedade sem memória perde identidade e fica à mercê da história.”

Respostas

Procurado pela reportagem, o Porto Digital informou que nunca chegou a receber o edifício em definitivo. “Diante da perspectiva de receber o prédio, o Porto Digital chegou a realizar um estudo de reabilitação do imóvel por meio de um concurso de arquitetura. Mas como a entrega do prédio não foi concluída, o projeto teve que ser interrompido. Em função disso, não foi iniciada qualquer recuperação ou requalificação do prédio por parte do Porto Digital.”

Dentre os motivos da descontinuidade do repasse, estaria a negativa da Diretoria de Preservação do Patrimônio Cultural da Prefeitura do Recife em relação ao projeto. Procurada pelo JC, a Prefeitura da Cidade do Recife esclareceu que “a proposta apresentada para a revitalização do edifício histórico que sediou o Diario de Pernambuco não atendia à legislação, tornando o estudo não-factível, uma vez que a verticalização proposta para a área não se enquadra nos parâmetros de volumetria exigida para o local, principalmente por levar em conta a construção de uma torre.”

Já a Fundarpe afirmou que o prédio agora estava sob responsabilidade da Secretaria de Administração (SAD). Em uma nota divulgada em 2019, a SAD ainda insistia que o prédio estaria com o Porto Digital. Agora, informa que que “já foi iniciada a fase interna da contratação dos projetos de engenharia e arquitetura para a reforma do referido imóvel.” “Em paralelo, o Governo está analisando os cenários para melhor utilização do patrimônio, sendo provável a instalação de órgão ou serviço público de relevância para a preservação da história de Pernambuco”.