Na mesa da edição virtual da 18ª. edição da Festa Literária, antropóloga critica o populismo e Bolsonaro
O brasileiro, antes de ser o homem cordial que a sociologia consagrou, pode não ser apenas o fruto de uma sociedade autoritária, repleta de golpes e contragolpes políticos. Pode ser ele mesmo a raiz desse autoritarismo. Para discutir o tema, a professora de antropologia Lilia Moritz Schwarcz participou neste sábado (5), às 16h, de uma mesa na edição virtual da 18ª. Festa Literária Internacional de Paraty, que termina amanhã, domingo (6). A mediação do encontro, que teve a participação da socióloga Flávia Rios, foi de Flávia Lima, ombudsman da Folha de S. Paulo.
Embora não trate do regime bolsonarista, no livro Sobre o Autoritarismo Brasileiro, lançado em maio de 2019 pela editora Companhia das Letras, Lilia Schwarcz começa com uma análise sobre a cultura escravocrata que se enraizou no País e, segundo ela, se transformou “numa linguagem com graves consequências”. Não se escapava da escravidão, observa a antropóloga no livro. De padres e militares a grandes proprietários, até os escravos libertos possuíam cativos. “E, sendo assim, a escravidão foi bem mais que um sistema econômico: ela moldou condutas, definiu desigualdades sociais, fez da raça e cor marcadores de diferença fundamentais”, escreve Lilian em seu livro.
Flávia Rios pediu explicações sobre a polarização entre “elites” e classes populares no livro de Lilian Schwarcz. “O que tentei mostrar é que são várias as elites no Brasil, mas tenho muita fé nos espaços cívicos, na resistência popular, nas insurreições”. Ainda sobre esse confronto interclassista, Flávia Rios questionou o próprio título do livro – autoritarismo no singular –, mas Lilian Schwarcz respondeu que, na busca da peculiaridade, é possível chegar ao plural. Citou seu livro sobre Lima Barreto, escrito a partir do contexto da autora, do momento em que ela vive, mas que, ao retornar ao tempo do escritor, acabou descobrindo a raiz de problemas atuais. Flávia Lima tocou no tema das injustiças históricas que atingiram inclusive Barreto.
O conceito de “raça social”, assumiu Lilia, a fez romper com definições que parecem tão naturais, e que a levaram a escrever sobre Lima Barreto. O Brasil, acrescentou, é o país das desigualdades. “Quanto mais diversos formos, melhor seremos”, diz. Trabalhava-se tanto aqui no Brasil que, segundo a autora diz no livro, a expectativa de vida dos escravos no País era de 25 anos – contra 35 nos EUA. No caso das mulheres, a situação era ainda mais cruel. Servindo de objeto sexual para o senhor dos escravos, ela tinha de cuidar dos filhos dos brancos e abandonar os próprios na roda dos enjeitados, como era chamada a portinhola das instituições de caridade onde eram deixados os recém-nascidos bastardos ou rejeitados. A cultura do estupro e da violência no Brasil começou no século 16 mas não morreu, como lembrou a antropóloga.
“O começo simbólico do governo Bolsonoro, marcado pela intolerância, é bom lembrar, foi a citação de Ustra no impeachment de Dilma Roussef”. No passado, segundo a antropóloga, a resposta a esse tipo de provocação foi imediata. Em seu livro, narra Lilian, africanos escravizados reagiram com igual violência aos desmandos de seus senhores e feitores: formaram quilombos, promoveram revoltas e mataram. Trabalhando por vezes 18 horas por dia, recebendo apenas uma muda de roupas a cada ano, foram raros os casos dos escravos que tiveram acesso à alfabetização – e, sem estudo formal, não há possibilidade de mudança social, observa a autora. A Lei Áurea, de 1888, não mudou totalmente esse quadro. Foi nessa época e contexto, lembra, que surgiu o darwinismo racial, em que homens brancos e ocidentais ocuparam o topo da pirâmide.
No livro, a esse respeito, Lilian escreve que a emergência do racismo é, portanto, uma espécie de “troféu da modernidade”. “Se a presença de negros em espaços de prestígio social já era basicamente vedada, ou muito dificultada pela escravidão, permaneceu bastante incomum no começo de nossa história republicana”. Esse aspecto, o da exclusão dos negros das principais instituições brasileiras, foi discutido na sexta mesa da Flip.