Os militares no comando da Saúde em meio à pandemia

Depois de cargos estratégicos serem ocupados por integrantes das Forças Armadas em meio à crise do novo coronavírus, general assume comando do ministério após o pedido de demissão de Nelson Teich

Por Camilo Rocha

Depois de apresentar divergências com o presidente Jair Bolsonaro em estratégias de combate ao novo coronavírus, o oncologista Nelson Teich pediu demissão do cargo de ministro da Saúde na sexta-feira (15). O posto foi ocupado interinamente pelo secretário-executivo do ministério, o general de divisão Eduardo Pazuello.

Durante a breve gestão de Teich, que ficou no cargo por menos de um mês, a pasta passou por um processo de militarização, com pelo menos dez cargos ocupados por oficiais da ativa e da reserva, no lugar de funcionários de carreira que foram exonerados dos cargos de confiança.

Teich não foi consultado sobre essas escolhas, nem sequer para a indicação de Pazuello para o segundo posto mais importante da pasta. Os nomes vieram de Bolsonaro, que justificou sua interferência dizendo que era preciso “formar um ministério que siga a orientação do presidente de ver o problema como um todo e não uma questão no particular”.

Bolsonaro é contra as medidas de isolamento social impostas por governadores e prefeitos pelo país. Defende que apenas pessoas que fazem parte do grupo de risco fiquem em casa, como forma de não prejudicar tanto a economia.

Trata-se de uma posição que vai contra a comunidade médica, que vê no isolamento uma forma de reduzir as transmissões do novo coronavírus a fim de que muitas pessoas não fiquem doentes ao mesmo tempo e não pressionem os sistemas de saúde.

Pazuello era considerado por secretários de saúde e profissionais do SUS (Sistema Único de Saúde) como o verdadeiro chefe da pasta na gestão Teich. Segundo fontes de bastidores citadas na imprensa, militares que trabalham na pasta querem aproveitar o embalo e emplacar seu nome como titular definitivo da Saúde.

O militar tem no currículo a coordenação da Operação Acolhida, que recebe refugiados venezuelanos em Roraima, e o comando da logística da Olimpíada de 2016, no Rio de Janeiro.

A breve gestão Teich no ministério
Sem autonomia e tutelado pelo presidente, Teich foi criticado por especialistas da saúde por não ter apresentado plano ou direção no enfrentamento do novo coronavírus.

Sobre o período de Teich à frente da pasta, seu antecessor, Luiz Henrique Mandetta, demitido por Bolsonaro com o apoio de ministros militares do Planalto, afirmou ao jornal O Estado de S. Paulo que foi “um mês perdido, jogado na lata do lixo”.

Em 17 de abril, quando Teich assumiu, o país somava 33.682 casos confirmados de covid-19 e 2.143 mortos. Estes são os dados no dia em que ele deixou a pasta:

218.223

Casos confirmados de covid-19 no Brasil, segundo dados de 15 de maio do Ministério da Saúde

14.817

Mortes por covid-19 na mesma data

Ao anunciar oficialmente sua saída do ministério na sexta-feira (15). Teich disse que deixou “um plano de trabalho para auxiliar estados e municípios”. Disse ainda que deixou um programa de testagens da população “pronto para ser implementado”.

O governo Bolsonaro e os militares
O governo Bolsonaro tem nove ministros militares, entre oficiais da ativa e da reserva. Os integrantes das Forças Armadas também ocupam diversos cargos no segundo e terceiro escalões. No total, são quase 3.000 militares em cargos de confiança na máquina pública.

No Meio Ambiente, o ministro Ricardo Salles conduziu policiais militares e oficiais das Forças Armadas a pelo menos 15 postos importantes em instituições ligadas à pasta, como o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) e o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente).

Desde fevereiro de 2020, todos os ministros que despacham no Palácio do Planalto são militares. São os generais da reserva Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), Walter Braga Netto (Casa Civil) e o major da reserva da Polícia Militar Jorge Oliveira (Secretaria-Geral). Braga Netto também coordena desde março o Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos da covid-19, doença causada pelo novo coronavírus.

Embora já tenha dito que não tenha “nada contra os civis”, Bolsonaro só aumenta a presença de militares em sua administração. Para analistas, os militares da ativa e da reserva que atuam no governo contribuem para conferir legitimidade ao governo Bolsonaro.

Como deputado federal por quase 30 anos, Bolsonaro atuou na defesa de interesses corporativos das Forças Armadas e das polícias militares nos estados. O presidente é também um defensor da ditadura militar (1964-1985). Costuma, inclusive, exaltar torturadores do período.

A atuação militar na saúde
“Essas pessoas [militares] não são definitivas. Conforme a situação voltar ao normal, essas pessoas vão voltar a seus lugares e pessoas não militares vão ser colocadas”, afirmou Teich em 7 de maio, em reunião de comissão da Câmara dos Deputados sobre a pandemia. Para Teich, a presença de integrantes das Forças Armadas na Saúde era justificada no que chamou de “guerra” contra a covid-19.

Na quarta-feira (13), a revista Veja afirmou que o então ministro iria nomear ainda mais militares para cargos técnicos por determinação do presidente. No total, seriam 37 novos funcionários vindos das Forças Armadas.

DISSONÂNCIAS MARCAM A RELAÇÃO DO PRESIDENTE COM O MINISTÉRIO
Entre os postos importantes do ministério que ficaram com militares durante a gestão Teich está a Dlog (Diretoria de Logística). Foram nomeados o coronel Alexandre Martinelli Cerqueira, como diretor da seção, e o tenente-coronel Marcelo Blanco Duarte como assessor.

O Dlog é responsável por comprar e medicamentos e insumos com que totalizam aproximadamente R$ 10 bilhões anuais. Desde a gestão de Mandetta, administradores do SUS reclamam sobre promessas de compras de equipamentos e remédios contra a covid-19 que não se concretizam.

Outras áreas loteadas com militares dentro do Ministério da Saúde incluem a da gestão interfederativa e participativa, pagamentos de pessoal e contratos administrativos, planejamento, orçamento e assuntos administrativos.

Técnicos e servidores mais antigos da pasta expressaram assombro diante do avanço militar dentro da pasta em meio a uma pandemia, uma vez que muitos dos nomeados não têm experiência na área da saúde.

Um dos críticos é Francisco Bernd, exonerado da diretoria de programa na secretaria-executiva do ministério (e substituído pelo tenente-coronel Jorge Luiz Kormann). Ao jornal Folha de S.Paulo, Bernd, que trabalhava na pasta desde 1985, afirmou que nunca tinha presenciado “uma mudança tão drástica, com a chegada de pessoas tão estranhas à Saúde (…) Os militares que chegam não têm absolutamente nenhuma experiência histórica na Saúde”.

Os militares e a cloroquina
Por determinação de Bolsonaro, as Forças Armadas ampliaram sua produção de comprimidos de cloroquina. Nos primeiros 45 dias de operação aumentada, entre o fim de fevereiro e meados de abril, aproximadamente, o Laboratório Químico Farmacêutico do Exército (LQFEx) divulgou ter produzido mais de 2,2 milhão de comprimidos do medicamento, a pedido do Ministério da Saúde. “A capacidade de produção pode ser de até 1 milhão de comprimidos por semana”, afirmou a instituição.

No entanto, no começo de maio, a produção teve de ser paralisada por falta de insumos. O Exército disse que esperava mais matéria-prima para retomar a fabricação. A destinação dos comprimidos caberá ao Ministério da Defesa, afirmou a assessoria da pasta.

Não existe ainda nenhum estudo científico que comprove a eficácia do uso da cloroquina no tratamento da covid-19. A Associação Médica Americana pediu que seu uso fosse limitado a pesquisas clínicas e dentro de hospitais sob supervisão rigorosa.

No dia 12 de maio, o ex-ministro Teich, em seu Twitter, afirmou que “a cloroquina é um medicamento com efeitos colaterais. Então, qualquer prescrição deve ser feita com base em avaliação médica.” Foi uma das principais discordâncias de Teich com o presidente, notório defensor da cloroquina.

Depois da saída de Teich, o presidente afirmou que o protocolo da cloroquina tinha sido alterado pelo CFM (Conselho Federal de Medicina) no sentido de recomendar seu uso. Um dia antes, o CFM havia negado que recomendasse o remédio.

Na sexta-feira (15), Bolsonaro ordenou que Pazuello assinasse um novo protocolo do ministério para o uso da cloroquina onde estabelece que ela está liberada para uso mesmo em pacientes com sintomas leves de covid-19. Antes, a pasta recomendava seu uso apenas em pacientes em estado grave.

O próprio site do Ministério da Defesa contém um alerta contra o uso não supervisionado do remédio. “Muitas pessoas estão adquirindo esse remédio e está faltando para quem realmente precisa. Nesse atual cenário em que o Brasil se encontra, a sociedade precisa estar atenta para que esse remédio não seja consumido sem indicação”, diz Carla Clausi, coronel médica do Exército.

O presidente americano Donald Trump também defendia com entusiasmo a cloroquina como tratamento contra a covid-19. Desde o fim de abril, quando saíram estudos científicos questionando a eficácia da droga, Trump tem sido mais cauteloso. “Nós temos muitos bons resultados e temos alguns resultados que talvez não sejam tão bons”, declarou à imprensa em 23 de abril.