Uma ameaça a nossas liberdades

Já há aqueles que apontam o modelo de Estado policial chinês como mais eficiente do que as democracias liberais

Por Selma Santa Cruz (foto)

Primeiro, foram as cenas de drones aterrorizando quem desobedecesse às ordens de confinamento na China. Mas ninguém estranhou muito, já que se trata de uma ditadura. Depois, vieram as imagens de policiais açoitando pessoas para dispersar multidões na Índia. Mas estas também despertaram pouco interesse. Aos poucos, contudo, as medidas de supressão de liberdades em nome da contenção da pandemia foram se multiplicando e radicalizando por toda parte. Multas tornaram-se comuns na Europa e alguns países apelaram para legislações de exceção bastante rígidas — caso da Hungria, que já vinha se distanciando de práticas democráticas há algum tempo, mas também da França, pátria por excelência dos direitos civis.

Já por aqui assistimos a episódios estarrecedores de brasileiros sendo presos com violência por trabalharem durante o isolamento social — ao mesmo tempo em que, vá entender, criminosos são retirados do confinamento nas cadeias. E somos informados de que o governo poderá em breve acessar dados das operadoras de celulares para identificar aglomerações, enquanto tenta emplacar uma medida ainda mais invasiva: o acesso a informações individualizadas, que infringiria a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, votada em 2018 justamente para assegurar o direito individual à privacidade na era do Big Data, na qual informações sobre o que consumimos, pensamos e fazemos se tornaram mercadorias e ativos políticos valiosos.

É claro que a supressão de direitos fundamentais como o de ir e vir, ou o de trabalhar para garantir o pão de cada dia, vem sendo implementada, alegadamente, em nome de um valor maior: a saúde e o bem-estar da coletividade. E supostamente com caráter provisório. Mas, diante da probabilidade de emergências como a atual tornarem-se mais frequentes, o movimento já levanta preocupações: seremos obrigados a escolher entre saúde e liberdade?

É bom lembrar que muitas das medidas excepcionais adotadas após as recentes ondas de atentados acabaram incorporadas à legislação de vários países. “Parece que, esgotado o terrorismo como justificativa para medidas de exceção, os governos encontraram na pandemia o pretexto ideal para ampliá-las além de todo limite”, alarma-se o pensador italiano Giorgio Agamben. O temor, portanto, é que essas restrições acabem se tornando o novo normal. Nos Estados Unidos, por exemplo, parte do pacote de emergência anunciado para o combate à pandemia será destinado à criação de um sistema de vigilância de coleta de dados.

E empresas de telecomunicações europeias já aceitaram fornecer a geolocalização dos usuários às autoridades.

Estaríamos, nessa ótica, diante de uma ameaça à democracia como a conhecemos, tão duramente conquistada e defendida no Ocidente por seguidas gerações ao longo dos séculos? O pior é que o perigo não se apresenta apenas na forma de medidas pontuais, mas refletiria uma mudança cultural mais profunda. Uma noção que vem infectando mentes de forma insidiosa há algum tempo, como reação ao terrorismo, mas passou a se disseminar de modo acelerado a bordo do coronavírus.

Trata-se do argumento de que governos totalitários estariam mais equipados para lidar com as complexidades e riscos da sociedade globalizada — como ataques cibernéticos, guerras biológicas, terrorismo e migrações descontroladas — do que as velhas democracias representativas, com seus lentos processos de construção de consensos e o constante desafio de conciliar direitos individuais e coletivos.

Tal vantagem teria se tornado insuperável graças à capacidade das ditaduras de lançar mão, sem quaisquer controles ou oposição, de um aparato tecnológico de vigilância e repressão digital só imaginável até agora nas mais distópicas projeções da ficção cientifica. Um sistema apoiado em algoritmos, sensores e recursos de inteligência artificial que torna possível algo sem precedentes na história humana: antever, manipular e controlar o comportamento de milhões de pessoas de forma simultânea e ininterrupta.

“A China poderá agora vender seu Estado policial digital como um modelo de sucesso contra a pandemia”, alertou recentemente um filósofo sul-coreano, Byung-Chul Han. “Espero que, após a comoção causada por esse vírus, não chegue à Europa um regime policial digital como o chinês.”

A pandemia está nos colocando, mais uma vez, diante do velho embate entre duas visões opostas de mundo.

Ou seja, o modelo totalitário, no qual o Estado tutela os indivíduos sob o pretexto de assegurar o bem coletivo, e a democracia, que reserva aos cidadãos informados a prerrogativa de decidir sobre o próprio futuro. O problema é que o Estado, como se sabe, não é uma entidade abstrata, voltada por natureza ao bem comum. Mas uma burocracia composta de pessoas que têm suas qualidades e defeitos. Na maioria dos casos, por sinal, muito mais defeitos do que qualidades. Será recomendável confiar-lhes nossas liberdades em troca da promessa de maior segurança?

Quem já viveu numa ditadura sabe a resposta. Para os que não passaram pela experiência, vale aquele conhecido recado de Thomas Jefferson, um dos fundadores da democracia americana: “O preço da liberdade é a eterna vigilância”.