Menina de García Márquez é metáfora de países latinos, diz Cecília Boal

Psicanalista conta como convenceu Augusto Boal a montar peça baseada em texto do escritor

Por Cecília Boal

A ideia de montar “A Incrível e Triste História de Cândida Erêndira e Sua Avó Desalmada” em Paris foi minha. Fiquei encantada por Gabriel García Márquez desde que ele me foi apresentado.

Conheci Augusto Boal em Buenos Aires em 1966 e quase imediatamente fui morar com ele em São Paulo. Meus pais vinham nos visitar de carro duas vezes por ano e, numa dessas viagens, me trouxeram um presente: “Cem Anos de Solidão”, que havia sido publicado na Argentina e tornou García Márquez famoso no mundo inteiro.

A partir dali fiquei viciada nesse maravilhoso contador de histórias latino-americanas, contadas com humor, graça, cor —histórias na verdade muito tristes, mas os latino-americanos aprendemos a viver assim, como forma de sobrevivência.

Quando passamos a morar na França, em 1978, me ocorreu a ideia de começar a reunir os artistas da América Latina que estavam morando lá. Começamos a fazer encontros no nosso apartamento, como sempre havíamos feito em todos os lugares por onde passamos. Nossa casa sempre foi uma embaixada.

Foi numa dessa reuniões que ouvi falar de uma adaptação de “Erêndira” para o teatro que havia sido feita na Colômbia. Imediatamente pensei que seria extraordinário montar esse espetáculo ali, na França.

Por quê? Para contar nossa história. Porque “Erêndira” é uma metáfora daquilo que nos mantinha longe dos nossos países, países frágeis, jovens, explorados. Não foi difícil convencer Boal nem o Théâtre de l’Est Parisien nem atores como Marina Vlady, que fez a avó desalmada.

A verdadeira aventura dessa nossa “Erêndira” parisiense foi encontrar García Márquez para negociar a autorização para montar seu conto. Uma amiga chilena descobriu que o escritor mantinha um apartamento em Paris, e lá fomos as duas deixar livros de Boal e uma cartinha na portaria do prédio.

Numa tarde em que eu estava sozinha em meu apartamento, tocou o telefone. Um senhor com sotaque muito forte me perguntou em francês se podia falar com Boal. Eu disse que ele não se encontrava e perguntei quem desejava falar. Quando ele disse “Gabriel García Márquez”, caí sentada no chão! Literalmente, como num conto dele.

?E assim foi que se produziu um histórico encontro num café do boulevard Montparnasse, do qual infelizmente não participei, como boa mulher latino-americana da minha época —que tinha o péssimo costume de deixar as coisas mais importantes nas mãos masculinas. Ah, se arrependimento matasse!

Deve ter sido certamente um encontro impressionante entre dois latino-americanos apaixonados pelo seu continente. A Pátria Grande, como sonhava Simón Bolívar, existe por causa dos artistas.

Em todo caso, “Erêndira” foi montada na França, e sua história (que é a nossa) foi contada. Participei como atriz, com enorme prazer, dessa montagem parisiense. E era evidente o prazer que Boal também tinha ao apresentar esse texto ao elenco.

Ele definiu “Cândida Erêndira” como literatura de cordel e se empenhou em traduzir o que isso significava, explicando para os atores que eram espécies de fascículos pendurados em cordinhas e vendidos nas feiras do Nordeste, uma literatura de “cordinha”. Eu amei essa tradução.

Explicava também o que significava realismo mágico, a revelação de um conteúdo escondido, imanente. Entendia que era difícil para os atores interpretar essa realidade tão particular sem cair na caricatura, no exagero. Num texto que escreveu para o programa, ele disse:

“Meu trabalho atualmente consiste em fazer com que os atores acreditem nas imagens criadas por García Márquez. É necessário que os atores vivam essas imagens enquanto realidades. É importante que o ator que interpreta o prefeito acredite que ele pode fazer chover fazendo buracos nas nuvens com uma espingarda.”

Se a folclorização era um perigo a ser evitado, Boal tinha também um cuidado extremo para evitar outro: o exotismo. É fácil cair na tentação do folclore para francês ver, em se tratando de um texto tão peculiar. Mas Boal não seria Boal se tivesse caído nessa armadilha.

E agora, para minha grande felicidade, Erêndira vive e respira também em São Paulo, na versão de Marco Antônio Rodrigues. E é interessante notar como se tornou brasileira. Sem folclore, sem exotismo e com a bela música de Chico César, tão harmonizada com o texto que se tornou parte da narrativa.

Pena que naqueles idos de 1983 não se tinha o hábito de fazer registros. As fotos que temos não são suficientes para mostrar as interessantíssimas diferenças entre as duas montagens.

“Erêndira” em francês, com atores franceses, num teatro nacional de Paris, ganhou ares franceses apesar de ter diretor brasileiro. Era inevitável. Nossa “Erêndira” agora é tropical, cheia de música e cores, com um estilo excessivo que acentua ainda mais o seu caráter trágico.

Porque a história de Erêndira é, infelizmente, a história banal de muitas meninas dos países pobres. Meninas cujo direito de ser criança lhes foi roubado. Meninas de países dominados —os nossos, que como Erêndira têm uma dívida impossível de pagar.

Tudo o que está acontecendo na América Latina me faz pensar mais ainda na Erêndira e na importância deste texto que provoca um debate que nos concerne particularmente: por que os agredidos defendem tantas e tantas vezes seus agressores?

O desejo de proteção da protagonista, uma menina, se perpetua nos adultos, que abrem mão da sua liberdade em troca da ilusão de serem protegidos —em geral por pessoas sem escrúpulos, exploradoras desse desejo legítimo. O direito ao amparo passa a ser visto como uma dádiva.

E nós estamos neste momento em que acreditamos em mentiras óbvias, proferidas com total cinismo, e em heróis autoproclamados salvadores da pátria. Mas diferentemente de Erêndira, que no fim troca a proteção pela liberdade, estamos trocando a liberdade por uma pseudoproteção, terrena ou divina.

A história de Erêndira nunca vai deixar de ser contada. Enquanto houver tantas Erêndiras no mundo, haverá sempre alguém querendo contar sua história.

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