O livro de Chico, sábado, na mesa da sala, me chama e diz: pare tudo, pare a crônica, a TV, pare com esse pianinho, é hora de ler “Essa gente”. Na mesa da sala, livro de Chico tem poder. Muiraquitã, talismã e quase que emendo numa letra do Djavã (sic). Mais ainda que moro no Alto Leblon, onde se passa metade do livro. A outra metade é no Vidigal, onde, por sinal, morei, tempo atrás, metade do meu tempo. O livro de Chico, à medida que leio, vai me dizendo, de mim para mim, coisas não escritas: que sou do Leblon, mas não dou porrada em índio velho, não esculacho os zeladores nem ando armado, não digo “seu merda” mostrando cano. Só nos sonhos entrelaçados com a vida, de que Chico é narrador fabuloso, a gente encontra alívio criativo e mesmo cômico para a pobreza de espírito que, qual masmorra, nos mantém submersos no lodo da burrice endêmica.

Burrice que se cheira, aqui, também, no canal da Visconde de Albuquerque, onde, igual ao personagem do Chico, já vi, em dia de tempestade, cair um fícus bem na minha frente, fiz até foto e postei, o pessoal curtiu e chorou pela árvore.

No edema de fanfarronices sanfonadas a quatro ventos nas multimídias redes sociais, a gente vai levando e repetindo medleys de refrãos dos anos de chumbo com uma atualidade assombrosa: vai-passar-apesar-de-você-amanhã-há-de-ser-outro-dia, murmuro, qual trem, junto com os passos de paralelepípedo. Levo na mão o livro do Chico, a capa virada para o exterior, pra essa gente ver. Qual é? Vai encarar? Livro de Chico é cartaz, manifesto, estandarte. Quando cheguei ao Leblon o bairro ainda tinha jeitinho de pequeno, um Leme do lado de cá, mas foi ficando posudo, essa gente que já o tinha enchido de um bafo cosmético, respirado por narizes torcidos (e em pé), de pânico que o metrô trouxesse, pro lado de cá, a caravana do Arará, e olhe eu, de novo, aos refrãos.

Aliás, lendo Chico tenho a sensação insana de ouvir sua voz cantarolar a prosa-canção em chique tecelagem. Se for até o piano não saberei dizer aos dedos quais são as notas. Talvez apareçam em sonho, igual ao protagonista: sinestésico, o Duarte alia cheiros e sons que se antecipam ao nascimento da imagem, e se irmanam no porvir dos sonhos.

É que Chico não mistura ficção e realidade, essa frase, a mais gasta, vazia, e abusada da história das letras. Chico é a ficção que tudo abrange, a fabulação que contém o concreto, o sensorial que contém o cotidiano. E o “real”, terrível, fora de tudo, do qual só suspeitamos, fugaz, como raio.

A realidade que grita no livro não é a do protagonista, é a da cidade, outrora partida, hoje mutilada, castrada. Ressoando, contudo, em suas entranhas e ausências, uma voz imemorial, de um Orfeu Negro, transmutado, hoje, em eunuco, donde cito, sem spoiler, meandros simbológicos do livro. E voltando a ele, livro, é como se, em trágica polifonia, discursos autônomos, de diferentes vozes, tomassem vida, com aparência de diário quase epistolar. Mas são “cartas” que a vida escreve de si para si, sem dono, sem autor, de todos para todos, vivos, mortos, sonhadores, sonhados, ditos, impressos, gravados, reais, virtuais, matéria, onda, água do mar.