Prisão somente após “trânsito em julgado” é grave retrocesso que pode ser evitado

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Charge do Nani (nanihumor.com)

Deu em O Globo

O centenário Supremo Tribunal Federal exerce protagonismo no fortalecimento do estado democrático de direito. Tem sido um trabalho de reafirmação e consolidação de valores. Na próxima quinta-feira, dia 7, a Corte terá oportunidade de exercer mais uma vez este papel, quando seus 11 ministros definirão se a condenação confirmada em segunda instância pode começar logo a ser executada ou se será necessário aguardar o “transitado em julgado”, ou seja, o esgotamento das incontáveis apelações que a legislação permite, para enfim a justiça ser feita. Que nem sempre é.

Não constitui um debate basicamente teórico com desdobramentos apenas acadêmicos. O presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, abrirá a sessão de quinta-feira estando o enfrentamento desta questão com o resultado parcial de 4 votos a 3 em defesa da segunda instância como referência para que veredictos comecem a ser aplicados.

HAVERÁ EMPATE – No lado até agora vencedor, encontram-se os ministros Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Luiz Fux; no oposto, Marco Aurélio Mello, relator do caso em julgamento, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski. Mas a previsão fundamentada em posições de alguma maneira já assumidas pelos donos dos votos restantes (Cármen Lúcia, Celso de Mello, Gilmar Mendes) é que haverá empate de 5 a 5, a ser decidido por Toffoli, presidente do Tribunal.

O ministro já votou pela prisão em segunda instância, mudou de posição, e tentaria uma solução “meia-sola” — nos termos de Marco Aurélio Mello —, que deixaria com o Superior Tribunal de Justiça (STJ) o marco para o começo da execução da sentença.

Na segunda-feira, Dias Toffoli encaminhou ao Congresso projeto de lei para restringir a aplicação das prescrições. Uma resposta aos muitos que se opõem à derrubada da prisão em segunda instância com o argumento de que isso favorecerá os réus em condições financeiras de contratar advogados competentes para explorar o emaranhado de leis, a fim de que os crimes cometidos por sua clientela caduquem, por força do excessivo número de recursos permitidos no Brasil.

NÃO RESOLVE – Na avaliação de especialistas, a proposta de Toffoli não resolve o problema. Não elimina as postergações.

Não se deve considerar o Supremo volúvel por ter, em 2016, mudado o entendimento da execução de pena, para considerar legal a prisão a partir da segunda instância. Está no voto já pronunciado pelo ministro Luís Roberto Barroso: na entrada em vigor do Código de Processo Penal, em 3 de outubro de 1941, a Justiça brasileira passou a executar a sentença na sua confirmação em segunda instância. Veio a Constituição de 1988, continuou assim, até 2009, quando, por meio de um julgamento de habeas corpus que teve o então ministro Eros Grau na relatoria, passou a vigorar o “transitado em julgado”.

Até que em 2016 o ministro Teori Zavascki restabeleceu a norma histórica, ao relatar também um pedido de habeas corpus, ao manter a rejeição a duas ações cautelares de Declaração de Constitucionalidade (ADCs) e a um Recurso Extraordinário com Agravo (ARE), neste caso, uma decisão vinculante.

NORMA INTERNACIONAL – A prisão em segunda instância não é uma jabuticaba jurídica, algo dos trópicos. Existe na maioria dos países, em especial naqueles em que o processo civilizatório democrático está mais avançado. Exemplos de Canadá, Estados Unidos, Alemanha, França, Inglaterra, bem como Espanha e Portugal. Na vizinha Argentina ocorre o mesmo. Em certos países, a depender do crime, a pena de prisão passa a ser cumprida logo na primeira instância.

O voto do relator Marco Aurélio Mello pela revogação da jurisprudência é dado sobre ADCs impetradas pelo PCdoB, pelo Patriota e pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Elas pedem a declaração de constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, que determina: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.

ORDEM JUDICIAL – Na interpretação dos defensores da prisão em segunda instância, como o ministro Luiz Fux, o estabelecido no artigo 283 do CPP, de que a prisão pode ser executada por “ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente”, é suficiente para sustentar a execução antecipada da sentença. Na Constituição, o artigo 5º LXI estabelece que a prisão se dará: “em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente”. Confirma esta interpretação do CPP. São estas as condições para prisão, e não o esgotamento dos recursos.

Já os magistrados “garantistas”, ao contrário dos “consequencialistas”, se apegam ao sentido literal do “transitado em julgado”. Um assunto tão polêmico, e que tem dividido o Supremo, não deveria ser decidido como competição esportiva. Ainda por cima só tendo transcorrido, desta vez, três anos da vigência da execução da sentença a partir da segunda instância, uma jurisprudência que vigorou de 1941 até 2009, quase sete décadas, sem problemas. Por que o açodamento, se as mais consolidadas democracias do mundo adotam a regra da segunda instância? E nenhum dos tratados e convenções multilaterais de defesa dos direitos humanos exige o “trânsito em julgado” para o cumprimento de sentença.

PREMISSAS FALSAS – Há também premissas falsas dos defensores do “transitado em julgado”. Foi demonstrado por Luís Roberto Barroso que a vigência da prisão em segunda instância não aumentou o encarceramento, como é alegado. Na realidade, este conflito que divide a mais alta Corte do país não tem a ver com a maioria dos brasileiros, os pobres. Estes não constituem advogados, são presos provisoriamente e compõem 40% da população carcerária.

O tema da segunda instância interessa de perto a apenas 4.895 presos, entre eles condenados por roubo do dinheiro público etc. Têm enorme poder de influência.

Outro forte argumento a favor da manutenção de uma jurisprudência que vigorou por 68 anos, de 1941 a 2009: na primeira e segunda instâncias se esgota a análise de provas, definem-se a materialidade do delito e sua autoria. Depois disso, há apenas discussões sobre aspectos jurídicos. Daí ser ínfima a taxa de sucesso de recursos especiais e extraordinários encaminhados ao STF e ao STJ, em favor dos condenados.

SÓ 0,035% – No STF, por exemplo, em 25.707 recursos extraordinários, apenas em 1,12% deles houve decisão favorável aos réus, e só em 0,035% ocorreu absolvição. Portanto, não se confirma que a prisão em instâncias inferiores resulta em um massivo desrespeito a direitos.

O julgamento de quinta-feira dá chance ao STF de ser sensato e não permitir recuos que danifiquem a confiança que a sociedade voltou a ter nas instituições com o enfrentamento da alta corrupção. Sem ferir a Constituição.

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