Exposição resgata a história de africanos escravizados

Idealizada por historiador e artista brasileiros, exposição ilustra a história de pessoas que tiveram a identidade tolhida e foram resumidas a ‘escravos’

Exposição resgata a história de africanos escravizados
Equipe busca parcerias para levar a exposição itinerante ao Brasil (Foto: Ilustração/Pablo Parra)

É pensando o passado que nos tornamos capazes de compreender o presente para, então, idealizar o futuro. Esse processo de aprendizado antropológico serve para ilustrar o projeto “A Rota do Escravo”, iniciativa da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) que busca estimular a compreensão e o reconhecimento do período da escravidão e do tráfico negreiro, bem como suas consequências em moldar a cultura de diferentes continentes.

O projeto completa 25 anos em 2019. Para marcar a data, no dia 8 de outubro, será inaugurada na York University, em Toronto, Canadá, a exposição itinerante Fragmentos da Memória, idealizada pelo historiador pernambucano Bruno Véras, um dos pesquisadores que contribuiu para o volume 10 da Coleção de História Geral da África, da Unesco, e pelo ilustrador paulista Pablo Parra.

A exposição é uma releitura artística e gráfica da história de cinco africanos que foram escravizados e levados para diferentes partes do mundo. Duas das histórias passam pelo Brasil.

Participam do trabalho cinco pesquisadores, provenientes da Turquia, Nigéria, Canadá, Inglaterra e Brasil, que integram o grupo de estudos acadêmicos Freedom Narratives. Os trabalhos são coordenados pelo pesquisador e professor da York University Paul E. Lovejoy, referência em estudos sobre escravidão, diáspora africana e relações raciais, conforme explica Bruno Véras, em entrevista ao Opinião e Notícia.

“O professor Olatunji Ojo pesquisou a história de Osifekunde (1793-1841), iorubá nascido onde hoje é a Nigéria; Nielson Bezerra pesquisou a história de Gracia Maria (1730-1789), nascida em Angola; Maureen Warner-Lewis pesquisou a história de Catherine Mulgrave Zimmermann (1827-1891), que retornou ao continente africano no século XIX para ser professora; Özgül Özdemir pesquisou a história de Nadir A?a (1870-1957), um eunuco etíope, companheiro favorito do último sultão otomano; e eu preparei o texto sobre Mahommah Gardo Baquaqua (1824-18??)”, diz Véras.

Duas das historias expostas passam pelo Brasil

As histórias que passam pelo Brasil são a de Osifekunde, que conseguiu se tornar livre na França, mas voltou ao país para ver seu filho, mesmo sob o risco de ser capturado e novamente escravizado; e a de Mahommah Gardo Baquaqua.

A história de Baquaqua foi alvo de estudo de Véras em um projeto anterior, o Projeto Baquaqua, coordenado por ele em 2015, que culminou no lançamento da primeira autobiografia em português de um africano escravizado que viveu no Brasil, entre os anos de 1845 e 1847, em Pernambuco.

Véras explica que a exposição Fragmentos da Memória pode ser considerada um desdobramento do Projeto Baquaqua enquanto ação de história pública. Ele conta que, em 2015, quando trabalhava na organização e tradução da autobiografia, a ideia de um projeto mais amplo já pairava em sua mente.

“Isso era 2015, e desde então já trabalhava, sob a direção do Prof. Paul Lovejoy, como coordenador do Projeto Freedom Narratives of the African Diasporas. Naquele momento, organizava os primeiros esboços para o website, negociando parceiras, lidando com as políticas da academia e fundos de pesquisas e coletando novos materiais”, explica Véras.

Foi nesse momento que ele foi contatado pelo ilustrador Pablo Parra, que tomou conhecimento do Projeto Baquaqua e ficou fascinado pela iniciativa.

“Achei a história fascinante em vários aspectos, pois sempre me incomodou o fato de o africano escravizado ter sido tratado pela história tradicional e, consequentemente, nosso inconsciente coletivo apenas como força de trabalho. Entendi que esse livro ajudaria a trazer novas perspectivas para um assunto que o Brasil nunca fez questão de resolver: a escravidão. Senti vontade de contribuir com a minha arte, por isso corri atrás dos responsáveis pelo projeto e encontrei o Bruno Véras em uma rede social. Eu me ofereci para ilustrar a biografia do Baquaqua, porém, a capa já estava fechada. Alguns dias depois, Bruno entrou em contato comigo novamente e me propôs criar ilustrações sobre a vida de outros africanos que passaram pela escravidão, baseadas nos documentos do seu grupo de estudos, o Freedom Narratives. Começamos esse projeto, mas logo ele foi perdendo força devido aos nossos compromissos profissionais. Assim, o projeto acabou ficando na geladeira. Depois, eu resgatei o projeto para o meu TCC no curso de Design Gráfico da Unicamp, fiz algumas modificações e o projeto voltou a caminhar. O Bruno atuou como coorientador nesse projeto de TCC e fizemos várias reuniões por Skype com outros pesquisadores de diferentes partes do mundo para discutirmos sobre os personagens ilustrados e suas vidas. O resultado final teve uma aceitação muito boa. Depois disso, o Bruno me convidou para expor essa série de ilustrações na York University. Creio que foi bom o projeto ter tido essa pausa, pois voltou muito mais maduro e consistente”, explica Parra ao O&N.

Pablo Parra (PunkArt Macumba) com um dos pôsteres que estarão na exposição

Pablo Parra conta ao O&N que a arte sempre foi algo presente em sua vida, e que o desenho faz parte de suas primeiras memórias. Durante a adolescência, ele conheceu o rap, por influência da irmã mais velha. Em seguida, teve contato com o punk. As duas vertentes musicais influenciam sua vida e trabalho. Sua carreira como ilustrador profissional começou após os 20 anos, paralelamente à carreira como designer gráfico em agências de comunicação.

Ele explica que seu trabalho aborda outras questões além da inclusão e política, mas que tais temas acabam surgindo como uma necessidade de externalizar e se posicionar perante o mundo. “As referências musicais políticas inevitavelmente me levaram a conhecer a obra de artistas visuais como Emory Douglas e Basquiat. Creio que um outro ponto importante é fato da minha família ter origem na classe trabalhadora, dos bairros mais afastados. Acho que essa combinação de fatores tenha fabricado o prisma pelo qual eu vejo o mundo e isso muito provavelmente reflete também em meu trabalho”, explica Parra.

Para a exposição, o artista destaca que a inspiração veio da vida dos próprios personagens retratados. “Foram desenvolvidas cinco ilustrações contando a vida de cinco pessoas diferentes. A inspiração veio, de fato, dos próprios documentos biográficos cedidos pelo Freedom Narratives. O logo da exposição teve inspiração no próprio nome Fragmentos da Memória, onde criei um mapa da África despedaçado. A partir desses estilhaços, criei formas que pudessem transportar todas as ilustrações a uma ideia de unidade, amarrando todas as peças. Passagens importantes da vida de cada um foram materializadas nas ilustrações. Buscamos fugir de certos chavões, como correntes e coisas do tipo, pois a ideia era contar a vida de cada um dos personagens, quem eram essas pessoas, suas origens, seus sonhos”, explica Parra.

Assim como Parra, o professor Paul E. Lovejoy conta ao O&N que a proposta é jogar luz sobre a trajetória de pessoas que tiveram a identidade tolhida e foram resumidas a “escravos” pela história. “As biografias demonstram que as pessoas não eram ‘escravos’. Suas identidades não estavam amarradas à servidão, mas sim às suas origens, seu relacionamento com outras pessoas e as comunidades que passaram a integrar onde quer que tenham sido levadas. As biografias restauram a dignidade e a identidade individual de pessoas que, por vezes, são classificadas apenas como vítimas, como escravos”, explica o pesquisador.

Segundo Lovejoy, as biografias têm como foco africanos escravizados que nasceram na África Ocidental e nascidos em regiões das Américas, como a Bahia, que migraram para a África posteriormente. “Elas incluem eunucos que terminaram em palácios do Império Otomano, muçulmanos que foram levados para diferentes regiões do continente americano e pessoas associadas a grupos étnicos específicos, como iorubá ou nagô, como são conhecidos no Brasil”, explica Lovejoy.

Bruno Véras é historiador brasileiro, coordenador do Freedom Narratives Project

Véras aponta que, assim como o Projeto Baquaqua, a exposição Fragmentos da Memória também ganhará um website próprio no Freedom Narratives. “Já planejamos outras ações de arte, seguindo a mesma proposta e metodologia desenvolvidas no Fragmentos da Memória, com artistas da África Ocidental e Caribe para ano que vem”.

Atualmente, a equipe se empenha na construção de novas parcerias que possibilitem levar a exposição itinerante ao Brasil – último país das Américas a abolir a escravidão e por onde passaram mais de 4 milhões de africanos escravizados, o maior fluxo de todo o continente.

Véras destaca que iniciativas como a exposição Fragmentos da Memória têm três importantes objetivos: conceitual, atitudinal e estético.

“O primeiro é o caráter acadêmico e pedagógico. Esse seria o nosso objetivo conceitual, fazer as pessoas conhecerem as histórias. Daí seguimos para o objetivo atitudinal. Nós, naturalmente, nos relacionamos com nomes, rostos, características (e lutas) internas. Queremos que as pessoas conheçam esses personagens para que se coloquem em um exercício de empatia com as histórias e indivíduos. A arte é um caminho excepcional para isso. E Pablo Parra é um artista incrível e especialmente sensível. Nos coloca a pensar. E isso é lindo, triste, surpreendente no reconhecimento e distanciamento de alguns dos elementos das histórias. Isso é arte. Nos desloca, incomoda, emociona. Essa arte construída através do exercício histórico com biografias, dentro de nossa proposta, tem como objetivo atitudinal lutar contra o racismo, distanciamento humano, xenofobias. E isso se relaciona com o último objetivo, que é o estético. E que como todo exercício estético, também é um exercício político”, explica o historiador.

Véras destaca ainda que os trabalhos do Projeto Baquaqua não encerraram com a publicação da autobiografia em português. Segundo ele, a expectativa é que um livro seja lançado já no próximo ano.

“O trabalho com o Projeto Baquaqua é mais do que um trabalho com a biografia publicada pelo personagem em 1854. Baquaqua publicou uma autobiografia, o que pretendo fazer é escrever sua biografia completa. Ele, em 1854, omitiu vários detalhes, o seu editor manipulou alguns outros. Temos muito mais sobre ele em arquivos americanos, canadenses, brasileiros, da Libéria, Inglaterra, e norte da Nigéria, um espaço difícil e perigoso de pesquisar por conta do Boko Haram. Contudo, o doutorado junto ao professor Lovejoy toma tempo, essas ideias de arte que me perseguem me ocupam e tenho uma filhinha de 3 anos me chamando para assistir Cavaleiros do Zodíaco também, mas isso é maravilhoso”, explica o historiador.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *