O cartunista que desafiou o governo chinês

Alvo de perseguição por parte do governo chinês, cartunista e ativista pró-democracia, que atende pelo pseudônimo de Badiucao, revela seu rosto pela 1ª vez

O cartunista que desafiou o governo chinês
Badiucao tomou a decisão de aparecer após censura em Hong Kong (Foto: Badiucao/Arquivo Pessoal)
Os 30 anos do Massacre da Praça da Paz Celestial, marcados na última terça-feira, 4, são um constante alerta de que criticar o governo chinês ou se opor à sua agenda política pode ser fatal.

Ciente disso, o cartunista Badiucao (um pseudônimo) optou pelo completo anonimato quando iniciou sua carreira, em 2011. O estopim que levou à trajetória artística irrompeu anos antes, em 2007. Naquele ano, Badiucao e outros três colegas de curso de Direito assistiam a um filme pirata, quando, de repente, as cenas alternaram para outro documentário, emendando clandestinamente, sobre o Massacre da Praça da Paz Celestial.

Durante três horas, os estudantes assistiram cenas de tanques investindo contra manifestantes pacíficos, que protestavam pela democracia, bem como militares atirando contra os manifestantes. O governo chinês nunca divulgou oficialmente o número de mortos, mas estimativas apontam para milhares.

Após assistir o documentário, os quatro estudantes – todos na casa dos 20 anos de idade – sentaram em silêncio. Foi neste momento que Badiucao percebeu que vinha sendo apenas mais um bom e apolítico garoto, proveniente de uma família de classe operária de Xangai.

Badiucao tinha apenas três anos de idade quando o massacre ocorreu, mas as cenas de soldados avançando contra civis e estudantes causou um impacto pessoal. Os manifestantes eram tão jovens e descontraídos que Badiucao facilmente conseguiu se enxergar neles. Foi então que perguntas inundaram sua mente: Por que não aprendemos sobre isso? Quais eram os nomes das vítimas? Esse acontecimento foi real?

Foi após esse despertar político que Badiucao iniciou sua carreira como o cartunista, artista e ativista pró direitos humanos. Após concluir seu curso de Direito, ele se mudou para a Austrália, onde conseguiu cidadania e trabalhou como professor de escola primária, mantendo, paralelamente, uma carreira clandestina como cartunista ativista. “Durante o dia, eu trocava fraldas e cantava canções de ninar para as crianças. À noite, eu me tornava um combatente em minha pequena sala, esquadrinhando as notícias do dia em busca de um tópico para minha caneta”, disse Badiucao, em uma recente entrevista ao New York Times.

Ele mantinha sua identidade totalmente oculta, nem mesmo seus amigos e familiares sabiam de seu trabalho como cartunista. No entanto, um evento ocorrido em 2018, durante uma exposição de seus trabalhos em Hong Kong – território semiautônomo localizado no sudeste da China – acionaram o sinal de alerta, levando, mais uma vez, a uma reviravolta na vida de Badiucao.

Semanas antes de a exposição ser aberta ao público, Badiucao recebeu uma ligação urgente. Ele foi informado de que o governo chinês havia descoberto sua identidade, identificado seus familiares na China e sinalizado que representantes seriam enviados à exposição. Tanto Badiucao quanto os cocuradores da exposição, a Anistia Internacional e a organização Hong Kong Free Press interpretaram o sinal como uma ameaça à segurança e a exposição foi cancelada.

O episódio foi crucial na decisão de Badiucao de finalmente expor seu rosto pela primeira vez, em um documentário sobre sua trajetória, que estreou na Austrália na terça-feira. As conversas entre Badiucao e o diretor Danny Ben-Moshe começaram um ano antes do episódio em Hong Kong, em 2017. A princípio, o cartunista não tinha intenção de aparecer na filmagem, o que explica sua aparição apenas nas cenas finais do documentário. Segundo Badiucao, a intenção nunca foi fazer uma espécie de “grand finale” para a película, com sua aparição apenas nos últimos momentos. Ele afirma que a filmagem se deu conforme as conversas evoluíam, e que a decisão de aparecer foi tomada nos últimos dias de gravação.

Badiucao afirma que a decisão de aparecer no documentário está diretamente ligada ao episódio em Hong Kong. “O risco está ficando real. Nós costumávamos pensar em Hong Kong como um ovo em cima de uma mesa, e o continente [a China] estava balançando a mesa deixando o ovo prestes a cair a qualquer momento. Agora, eu vejo [Hong Kong] como um ovo já em direção ao chão”, disse Badiucao, em entrevista à revista Foreing Policy, publicação que é referência em assuntos de política internacional.

Hoje bem diferente do jovem apolítico que um dia foi, Badiucao afirma ter resgatado o propósito das gerações anteriores de sua família. Ele destaca que a veia artística sempre esteve presente, e também sempre foi reprimida pelo governo chinês. Seu avô e avó eram cineastas bastante ativos na década de 1930 e até o final da década de 1940, quando eclodiu a Revolução Chinesa, e intelectuais passaram a ser perseguidos. Seus filmes eram vistos como uma ameaça para o governo e o avô de Badiucao foi sentenciado a trabalhos forçados em um campo de concentração no oeste da China. Ele morreu lá, ao que tudo indica, de fome. A avó morreu anos depois. Badiucao nunca conheceu nenhum dos dois, mas diz enxergar neles uma fonte de inspiração.

“Eles sequer estavam produzindo arte subversiva, não estavam criticando o governo. Mas seus filmes não se enquadravam totalmente na propaganda desejada [pelo Partido Comunista Chinês]”, disse Badiucao.

Ele cita que um dos filmes de seus avós que mais causou problema era uma espécie de “Titanic chinês”. A história era sobre um membro do Partido Comunista Chinês (PCC) que deveria se tornar um herói salvando todos que estavam a bordo do barco. Porém, ao longo do filme, traços humanos começam a aparecer no personagem principal. Ele passa a ter dificuldades e em, alguns momentos, chega a tomar atitudes egoístas.

“Mas mostrar elementos humanos no personagem se tornou um problema. Aparentemente, o PCC gosta apenas heróis-robôs. Você tem de ser bravo o tempo inteiro, desde o início até o final”, diz o cartunista.

Badiucao destaca que espera que seu trabalho contribua para futuras mudanças e que, mesmo que elas demorem a vir, diz estar satisfeito de cumprir seu papel nesse contexto. “Quero usar minha arte para, talvez, me tornar uma parte da mudança no futuro”, diz Badiucao.

Entre as obras mais famosas do cartunista – e também sua preferida – está o desenho do ativista chinês pró-democracia e Nobel da Paz, Liu Xiaobo, e sua esposa, Liu Xia. Liu Xiaobo foi condenado a 11 anos de prisão em 2009, por ter assinado a Carta 08, um documento que exigia a reforma política e a democratização da China.

Em 2010, Liu Xiaobo recebeu o Prêmio Nobel da Paz e Pequim não gostou nada da situação. O governo bloqueou as notícias sobre o prêmio na internet e a mídia estatal não divulgou a informação. Como estava preso, Liu foi representado por uma cadeira vazia na cerimônia.

Em 2017, a China concordou em soltar, por razões médicas, o ativista, que sofria de um câncer no fígado, em estágio terminal. Liu Xiaobo foi solto no final de junho e morreu poucos dias depois, em 13 de julho. Após a morte, o governo chinês passou a tentar silenciar a viúva do ativista, a poetisa Liu Xia, mantendo-a em prisão domiciliar, impedida de fazer qualquer contato com amigos ou com jornalistas. Em julho de 2018, a Alemanha conseguiu negociar a libertação da Liu Xia, que foi enviada para Berlim. Na Alemanha, ela retomou sua carreira artística, passando a publicar novos poemas, conforme noticiou uma reportagem da revista New Yorker.

Pouco após a morte de Liu Xiaobo, Badiucao fez o desenho em homenagem ao casal, no intuito de retratar seu breve reencontro. A obra, que percorreu o mundo, é dividida em três quadros. O primeiro retrata Xiaobo, em traje de presidiário, abraçado com Liu Xia. O segundo quadro, mostra o ativista se transformando em anjo e começando a subir. No terceiro, apenas uma parte de Xiaobo aparece no quadro, se despedindo de Liu Xia.

(Foto: Badiucao)

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