Manuel Alegre :”Os que nos governam não sabem história”

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Escritor e poeta Manuel Alegre
Entrevista conduzida por João Céu e Silva – Diário NotíciasPortugal

É o primeiro livro de poemas que Manuel Alegre lança após ter recebido o Prémio Camões. Um conjunto de poesias em torno do prior do Crato, que considera ser um protagonista ignorado sem razão.
O intuito pedagógico existe em Auto de António – Último Príncipe de Avis, o mais recente livro de poesia de Manuel Alegre. Explica: “Quero mostrar que na pior hora da história de Portugal o povo não se submeteu (ao domínio dos Filipes), o que custou muitas mortes. Essa figura lendária de D. António, prior do Crato, é um exemplo da insubmissão que não se rende, de alguém que morre longe, em Paris, com dificuldades e de quem nem se sabe bem onde está o seu corpo.”

É uma figura que sempre fascinou o poeta entre as que aprecia e recorda-se da primeira vez que teve uma sensação forte em relação ao prior: “Ainda estava no exílio e li O Indesejado, de Jorge de Sena. Achei-o uma figura maltratada e esquecida.” Depois leu Os Cadernos Secretos de Urbano Tavares Rodrigues e voltou a ficar impressionado. Mais recentemente, na investigação de António Borges Coelho, Os Filipes, observou como o historiador dá uma imagem muito diferente da ocupação filipina: “De uma grande violência a par da resistência do povo de Lisboa e de todo o país, que o aclama rei em Lisboa, Setúbal, Santarém e nos Açores, mas o seu retrato enquanto rei só existe na Universidade de Coimbra. Não pude deixar de escrever umas falas quase teatrais sobre ele e muitos de nós, as de um vencido invencido.”

Após este livro fica fixada a imagem definitiva do prior do Crato?

Esta é uma revisitação e ficção poética sobre o prior do Crato. O que espero é que volte a discutir-se a figura e que seja uma inspiração tanto para o amor ao país como para o espírito de insubmissão que representou. Nunca nada é definitivo, como se viu agora nestes incêndios e com o que aconteceu ao pinhal de Leiria. Foi como se queimassem uma parte da história de sete séculos ligados ao pinhal de que D. Dinis foi “plantador para as naus a haver” de que fala Fernando Pessoa. O que mostra, como dizia a Sophia, que este é um país muito antigo mas sem consciência de si mesmo. Este descuido que passámos a ter sobre nós mesmos coloca Portugal em risco porque os que já nos governaram tiveram uma estratégia nacional e a preocupação em preservar os valores permanentes do país. Hoje, não sei se isso existe, até porque há muitos que são mais patriotas europeus. Creio mesmo que os que nos governam não sabem história, situação que não pode acontecer. Portugal não é uma junta de freguesia de Espanha, nem o nosso passado se fez em ligação com a Alemanha, antes com a Inglaterra e virados para o mar: Brasil, África e Ásia. Sem essa dimensão, Portugal é um bairro ocidental.

Até que ponto nos representa?

Ele tem uma batalha impressionante em Alcântara, para a qual vai sem exército, apenas uns restos de cavalaria, e nunca se rende. Nisso, o prior do Crato é um pouco de todos nós, pois é um rei sem reino, um resistente e ao mesmo tempo um cosmopolita. O seu papel na história deveria ser reajustado tal é a injustiça que se faz, em muito por conveniência das grandes casas da fidalguia portuguesa que se bandearam para Castela, até a Casa de Bragança. É uma incomodidade.

Que se mantém até hoje?

De uma maneira geral os historiadores e na História que se ensina a sua pessoa quase que nem aparece, apesar de ser figura maior na contestação. Tanto assim que Filipe de Espanha promete uma soma gigantesca a quem o denunciasse e ninguém o faz, o que mostra que tinha o povo consigo mesmo sem exército.

No poema António: Esse Gajo e Eu sente-se uma grande identificação. É verdade?

Se não houvesse, por que estaria a escrever sobre este “gajo”, um termo que usei para não solenizar o poema. Sinto uma sedução por ele devido ao exílio, por muitas batalhas travadas, perdidas e ganhas.

Transfere a sua vida para a dele?

A minha e a de outros, pois há muitas coincidências. Existem muitos que são António sem o saber e os que resistiram tinham essa mesma capacidade de não se submeter. A minha preocupação sempre foi Portugal e acho que o país não é só a seleção nacional nem o patriotismo se esgota no futebol. Além de que existe um grande desconhecimento da nossa história, porque o facto de pertencermos à União Europeia não é uma diluição – já éramos europeus antes da Europa existir -, mas em relação a Espanha é outra situação. Agora é politicamente correto não falar dessa parte da história, mas a nossa independência custou muito caro e temos obrigação de ter respeito pelos nossos antepassados e pelo povo que lutou. Atualmente é de bom-tom esquecer Aljubarrota e as outras lutas, no entanto, até Salazar, apesar do pacto ibérico, sempre esteve atento e desconfiou dos espanhóis e de Franco – que escreveu uma tese sobre como ocupar Portugal em 24 horas. Estamos integrados num mesmo espaço europeu, mas não faltam castelhanos que acham que isto foi um equívoco e um assunto mal resolvido. Há um descuido e uma ignorância muito grande para um povo antigo como o nosso, que se repercute nas pessoas que estão no interior e nos emigrantes. O patriotismo está neles e não nas elites.

Em Fala de Alcântara e depois refere um país dado a tragédias…

Nós preferimos falar das batalhas que ganhámos. Ainda agora, por causa da Catalunha, estive a ler as batalhas da Restauração – que ganhámos todas. Contudo, a Batalha de Alcântara do prior do Crato foi sendo tratada como uma escaramuça sem importância apesar de ser das mais honrosas. Ele vai lá com alguns cavaleiros e o povo armado, perdendo-a contra o mais poderoso exército da Europa. É uma derrota honrosa porque fomos combater com o que tínhamos.

É um D. Sebastião ao contrário?

Não é por acaso que Sena escreveu a peça O Indesejado, mas por oposição ao D. Sebastião. Não será um D. Sebastião ao contrário, embora alguns fidalgos não o tivessem apoiado porque desconheciam se D. Sebastião morrera. No entanto, para o povo, mesmo com a crença sebástica, ele foi um salvador.

Escreve “Ninguém poderá desterrar esta invencível melancolia”. O que pretende?

A melancolia é uma palavra que vem de Filipe de Espanha por achar que a existência de uma saudade pelo prior é uma melancolia portuguesa. É realmente uma característica nossa, mas essa nostalgia no que se refere ao prior é também uma forma de resistência.

No entanto, o livro é melancólico…

Toda a vida dele, tal como esse período, é melancólica. No caso do prior do Crato, esteve em risco de vida muitas vezes, mesmo que Filipe não o tenha conseguido matar apesar de todas as suas tentativas. Só o matam depois de morto, quando o retiram da sepultura e do lugar a que tem direito na história. Não deixa de existir, é menorizado.

Sente mais responsabilidade após ter recebido o Prémio Camões?

Não. Responsabiliza, pois é o maior da língua portuguesa, mas a sua intenção foi o reconhecimento da minha escrita tal como ela é.

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