Cinema brasileiro: da chanchada ao cult

Cinema brasileiro: da chanchada ao cult

Como o cinema brasileiro evoluiu, deixando de ser conhecido como ‘sexo e palavrão’, para conquistar o reconhecimento mundial

Cinema brasileiro: da chanchada ao cult
Em 2017, a indústria brasileira lançou 160 filmes (Foto: Wikimedia)
O Brasil não tem nenhum representante concorrendo ao Oscar 2019, que será apresentado no próximo domingo, 24. No entanto, isso não reduz a qualidade do cinema brasileiro, que a cada ano conquista mais reconhecimento e prêmios internacionais.

No último final de semana, por exemplo, o cinema brasileiro somou cinco prêmios no Festival de Cinema de Berlim (Berlinale). O documentário Espero tua (Re)Volta ganhou o Prêmio da Paz e o Prêmio Anistia Internacional. Enquanto isso, a coprodução Breve História Del Planeta Verde – que uniu Brasil, Argentina, Espanha e Alemanha – conquistou dois prêmios Teddy. Por fim, o curta-metragem Rise conquistou o Audio Short Film Award.

Foto: Espero tua revolta_Your turn/Facebok

Foto: Espero tua revolta_Your turn/Facebok

Além dos filmes premiados, produções como Marighella, de Wagner Moura, e Divino Amor, de Gabriel Mascaro, chamaram a atenção dos participantes do Berninale. Estrelado por Dira Paes, Divino Amor, inclusive, já havia sido aplaudido no Festival de Sundance, nos Estados Unidos.

E estes são apenas alguns poucos exemplos das conquistas internacionais do cinema brasileiro. O filme O Pagador de Promessas (1962), de Anselmo Duarte, por exemplo, é o único longa brasileiro e sul-americano a conquistar a Palma de Ouro no Festival de Cannes, na França.

Mesmo com todas as conquistas, datando ainda do século passado, o cinema brasileiro foi reconhecido, por muito tempo, por “sexo e palavrão”.  Naquele momento, o cinema brasileiro, que ainda buscava se firmar, descobriu que sexo chamava a atenção. Por isso, passou a explorar esse artifício para conquistar audiência. Já o “palavrão” faz parte da linguagem brasileira, e mundial. Muitos filmes internacionais também utilizam da linguagem chula, apesar de algumas dublagens modificarem as palavras por sinônimos.

Somado a isso, entre as décadas de 1970 e 1980, as pornochanchadas ganharam espaço em todo o cenário nacional. Unindo “pornô” e “chanchada”, o estilo elevou o cinema brasileiro a um de seus apogeus comerciais, fazendo grande sucesso com o público. Nos anos 1980, por exemplo, chegava-se a produzir 100 filmes por ano. Diante de tanta fama, o estigma “sexo e palavrão” se fortaleceu.

Desde então, foi uma longa caminhada até se afastar, quase que por completo, desse rótulo. Foram filmes como Central do Brasil (1998), Cidade de Deus (2002) e Tropa de Elite (2007) que impulsionaram o distanciamento desse estigma. Sucessos de críticas e de público, os longas continham cenas de sexo ou diferentes palavras chulas, mas faziam parte do contexto, sendo integrados para ilustrar a história e não para chamar a atenção.

Cinema no Brasil

O primeiro cinema no Brasil foi inaugurado no Rio de Janeiro, em 1909: o Cine Soberano, onde funciona, atualmente, o Cine Íris, no centro da capital carioca. No entanto, em 1907, o Cinematogropho Parisiense, atual Teatro Glauber Rocha, também no centro do Rio de Janeiro, já tinha sido adaptado para exibições cinematográficas.

Acredita-se que as primeiras produções brasileiras datem de 1898, sendo documentários produzidos pelos italianos Affonso e Pachoal Segreto. A primeira filmagem teria sido a Baía de Guanabara, na região central do Rio de Janeiro.

O primeiro momento de grandes produções cinematográficas foi alcançado em 1909, quando foram produzidos 205 filmes. No ano seguinte, o número subiu para 209. No entanto, a partir de 1911, as produções brasileiras perderam força diante das produções norte-americanas.

Apenas entre os anos 1920 e 1930 o cinema brasileiro voltou a se expandir. Em 1929, foi lançado o primeiro filme sonoro brasileiro: Acabaram-se os Otários. Já a força do cinema brasileiro foi retomada nos anos 1930, com as chanchadas, que usavam o humor e a musicalidade como os principais componentes. Dercy Gonçalves e Grande Otelo foram alguns dos principais nomes do gênero.

Na década de 1950, o movimento Cinema Novo reinventou as produções brasileiras. Naquele momento, temáticas e linguagens nacionais começaram a ganhar forma no cinema. As chanchadas, anteriormente, tinham maior inspiração no cinema americano.

Nos anos 1960, o slogan “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” ditou o ritmo, com a abordagem de problemas comuns da sociedade brasileira. Nos anos 1970 e 1980, os grandes sucessos foram as pornochanchadas.

Um novo cinema

A partir do fim do período do regime militar, no final dos anos 1980, o cinema tomou outro ritmo. Aquele momento, entre 1988 e 1992, foi visto com temor diante das inseguranças com o fim do financiamento estatal promovido pela Embrafilme. No entanto, em 1993, o cinema brasileiro começou a ressurgir com qualidade.

Em 1996, o filme O Quatrilho, dirigido por Fábio Barreto, foi indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, além de ter conquistado outros prêmios internacionais. Em 1998 e 1999 foram as vezes de O que é Isso, Companheiro, de Bruno Barreto, e Central do Brasil, de Walter Salles, respectivamente, serem indicados à mesma premiação.

Já em 2001, o cinema brasileiro foi indicado, pela primeira vez, para concorrer ao Oscar de Melhor Curta-metragem em Live Action com a produção Uma História de Futebol, de Paulo Machline. Na área de animação, o Brasil também chamou a atenção com o brasileiro Carlos Saldanha, que já foi indicado por quatro produções, sendo um curta-metragem de animação.

Outros filmes como Cidade de Deus e a coprodução internacional Diários de Motocicleta também receberam destaque internacional. Nos últimos 12 anos, diferentes produções, de gêneros diversos, também chamaram a atenção, como Bingo – O Rei das Manhãs (2018), O Menino e o Mundo (2016), Que Horas Ela Volta? (2015), Hoje eu Quero Voltar Sozinho (2014), O Palhaço (2011), Tropa de Elite (2007), entre outros.

Sucesso e reconhecimento

De acordo com um relatório do Observatório Brasileiro do Cinema e Audiovisual (OCA), ligado à Agência Nacional do Cinema (Ancine), o cinema brasileiro expandiu de 2009 a 2017. Enquanto em 2009 foram lançados 84 filmes, em 2017 o cinema brasileiro lançou 160 produções nacionais.

Em 2017, o filme nacional de maior bilheteria foi Minha Mãe é uma Peça 2, estrelado por Paulo Gustavo. Ocupando 1.055 salas de cinema, a produção levou 5,2 milhões de pessoas ao cinema, sendo a nona principal bilheteria geral do ano. Filmes como Os ParçasPolícia Federal – A Lei é para Todos e D.P.A. – Detetives do Prédio Azul também levaram mais de 1 milhão de pessoas ao cinema.

Foto: Wikimedia

Foto: Wikimedia

No entanto, no que diz respeito ao período de 2009 à 2017, dois filmes brasileiros dominaram os rankings de maior bilheteria entre as produções nacionais e internacionais: Os Dez Mandamentos – O Filme (2016) e Tropa de Elite 2 (2010). As produções levaram, respectivamente, 11,3 milhões e 11,1 milhões de pessoas ao cinema. Entre os 20 filmes com maior bilheteria no Brasil no período, Tropa de Elite 2 foi o que contou com menos salas de exibição, apenas 733. Enquanto isso, Os Dez Mandamentos teve 1.127 salas ao seu dispor.

Para entender melhor o momento e a evolução do cinema brasileiro ao longo dos anos, o Opinião e Notícia conversou com o escritor, crítico, ator e cineasta independente Octavio Caruso, criador do site Devo Tudo ao Cinema. Autor do livro homônimo e de “A Arte do Guerreiro Lúcido”, e diretor dos curta-metragens Übermensch (2015)e Teresa (2015), Nocebo (2016), Se (2017) e Sacrifício (2018), Caruso também é membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ).

Enquanto no século XX alguns dos principais sucessos foram as chanchadas, atualmente os dramas e comédias têm ganhado mais espaço. A que isso se deve?

Octavio Caruso (OC): As chanchadas da Vera Cruz, Atlântida, Cinédia, Herbert Richers, eram elegantes tentativas de emular a fórmula dos musicais norte-americanos, e, com isso, através da prática, melhorar nossa produção e fazer, na medida do possível, milagre com os poucos recursos. Infelizmente, com o endeusamento de Glauber Rocha pelos acadêmicos inseguros e o Cinema Novo, todos estes esforços anteriores foram irresponsavelmente depreciados, tidos como “fitinhas menores”. O resultado disso, quando as fragilidades estéticas e narrativas deste movimento, que plagiava a Nouvelle Vague francesa e o Neo-Realismo italiano, foram ficando cada vez mais expostas, com o público rejeitando estas “egotrips” em favor de filmes populares, ou preferindo ficar em casa vendo televisão, foi um abismo criativo que durou muitos anos. Nas últimas décadas é que, ainda combalidos, tentamos começar do zero. E esta investida na comédia é sinal de que os engravatados estão começando a aprender com seus erros. Os filmes de comédia da Globo Filmes são a nova chanchada, com mais recursos e um “poder de fogo” (inclusive de divulgação) incomparável. Não se faz indústria de cinema com antídotos para insônia.

Quem nasceu nos anos 1980, 1990, ouvia de seus pais que o cinema brasileiro se resumia a “sexo e palavrão”. Atualmente estamos bem longe desse estigma. Como foi essa evolução?

OC: Eu sou de 83, corroboro esta informação (risos). O cinema nacional naquele período se voltou para a única coisa que sempre vendeu muito bem no país: sexo. Agora, analise comigo, na Itália do pós-guerra, destruída, desesperançada, os cineastas se reuniram e fizeram filmes de baixíssimo orçamento, utilizando pessoas do povo nos elencos, criaram poesia com a dor, obras imortais como Ladrões de BicicletaAlemanha Ano Zero, Roma, Cidade Aberta. Já o Brasil, ao menor sinal de aperto, apostou na sacanagem. Isso diz muito sobre o caráter de cada povo, a forma como artisticamente ele se expressa nos momentos difíceis. Se existia demanda, os produtores entregavam, não podemos culpá-los. A evolução, de certa forma, ainda não superou completamente esta juvenil obsessão do brasileiro pelo sexo na arte, como crítico, eu te garanto que boa parte dos curtas e longas exibidos em festivais, de cineastas novos, exibem sequências gratuitas de sexo. E, só para deixar claro, não há problema algum na utilização do sexo no cinema. Se a narrativa pede, como em Último Tango em Paris, faz todo sentido e pode ser filmado com extrema elegância. O problema é a utilização rasteira do sexo e da nudez (lógico, em filmes não-pornográficos), colocando atrizes em situações grosseiras, apenas para satisfazer a libido do diretor (e, por conseguinte, do público).

Quando falamos de cinema nacional, existe um “complexo de vira-lata”?

É uma questão muito interessante. O que ocorre é que os acadêmicos de cinema, faculdades e críticos veteranos, com raríssimas exceções, reverenciam Glauber Rocha e desprezam solenemente o cinema de gênero. Esta linha de pensamento forjada na inveja criou uma geração de inseguros que, por saberem que não são competentes, consideram mais fácil cuspir na cara de qualquer cineasta que não aprecie filmar por cinco minutos uma gota caindo, ou uma árvore de cabeça para baixo, em suma, aqueles projetos umbilicais insuportáveis que servem apenas como antídotos para insônia. O típico cineasta acadêmico nacional quer criar uma indústria de cinema com filmes que nem a própria família dele suporta ver até o final! É tolice, amadorismo. A bilheteria do “arroz com feijão” gostoso é que sustenta os filmes autorais independentes nos Estados Unidos. Resumindo, a síndrome de vira-lata nasce dos acadêmicos e acaba contaminando o público. O brasileiro inteligente que ama e estuda cinema sabe que produzimos excelentes filmes, só que estes não são divulgados pelos personagens da novela. O que ele faz? Vai buscar estas obras nos festivais.

O melhor filme brasileiro de 2018 apontado pela Abraccine foi Arábia. O longa é pouquíssimo conhecido no Brasil e não esteve na lista dos pré-indicados ao Oscar. Por que?

Se você quer realmente encontrar honestidade intelectual, leia as listas individuais de críticos que você respeita. Eu falo por experiência própria. As reuniões que resultam nestas listas de associações são um circo de egos inflados, muitas das vezes com debates sobre quais filmes são mais “interessantes” (leia-se, não como parâmetro de qualidade cinematográfica, mas para os interesses do grupo, pela melhor manchete, etc.). Arábia é um filme (sendo bondoso) mediano, como quase todos os que se destacam em premiações como o Oscar (cerimônia que necessita de bons índices de audiência). Entende? Não é uma escolha por mérito, logo, não há necessidade de racionalizar a sua presença na lista da Abraccine, ou em qualquer outra lista de grupos de críticos. Outro exemplo, Pantera Negra, uma bobagem divertida, competente, da Marvel, entrou na lista de 10 Melhores Filmes do Ano na ACCRJ. Como levar a sério associações que, dentre TODOS os filmes lançados no ano, em todas as nacionalidades e gêneros, selecionam um filme de super-heróis bobinho? A resposta é a mesma que explica a presença dele no Oscar: pura politicagem.

Por que os “melhores filmes”, apontados pelos críticos, normalmente são menos conhecidos do grande público? Isso demonstra uma força maior da Globo Filmes frente a outras produtoras?

OC: A força da Globo Filmes é impressionante, ainda que esteja perdendo este monopólio na opinião pública. O grande público não valoriza aquilo que não conhece. O brasileiro, em geral, não enxerga prazer no ato de se aprender coisas novas, logo, só “clica” em textos sobre filmes que conhece, por conseguinte, só prestigia filmes que são amplamente divulgados na mídia. Eu sou cineasta independente, existem muitos colegas talentosos que lutam para lançar suas produções, ficam dias em cartaz nas salas, o jogo é sujo e injusto. Eu tento, com o meu trabalho, desde 2008, divulgar nas críticas estes filmes brasileiros pouco vistos, os gêneros marginalizados (por pura ignorância do público e dos acadêmicos empoeirados), como a comédia e o terror.

O que falta ao cinema brasileiro para ser reconhecido como uma potência mundial na indústria?

OC: É muito complicado conquistar credibilidade na indústria sem coerência, sem incentivos, e, principalmente, sem formar um público criterioso e verdadeiramente interessado no tema. Uma potência mundial, creio, sinceramente, que será muito difícil até mesmo em longo prazo, mas é possível firmar uma indústria que caminhe ereta em sua própria nação. Atualmente, engatinhamos desajeitados. Mazzaroppi já dizia que não temos nem lâmpadas de qualidade nos sets de filmagem, tudo gambiarra, como podemos competir com quem sempre levou a sério esta arte? E, vale destacar, não há mal algum em aplaudir os norte-americanos, eles merecem ser a potência mundial que são, temos é que aprender com eles, temos que nos profissionalizar. O caminho em curto prazo? Um bom primeiro passo é ter leis de incentivo eficientes que valorizem os cineastas independentes, que realmente precisam de ajuda, não ficar só enchendo os bolsos de artistas já publicamente reconhecidos, como moeda de troca política, como ocorria neste país nos últimos 15 anos. Sem maracutaia, sem o “jeitinho brasileiro”, com seriedade, conseguiremos evoluir.

fonte:O&N/Henrique Schmidt

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