‘Eu sou a droga. Que me tomem a mim, eu sou alucinógeno’: uma entrevista com Salvador Dali, morto há 30 anos

Salvador Dali: imagem da exposição 'Dali, retrato cúmplice'

Não são apenas as famosas telas surrealistas de Salvador Dali que deixam os desavisados com vários pontos de interrogação no semblante. As entrevistas do pintor espanhol, cuja morte completa 30 anos nesta quarta-feira, também não eram nada convencionais. Em sua edição do dia 18 de março de 1973, O GLOBO publicou uma entrevista exclusiva concedida pelo artista plástico ao jornalista Alberto Oliva no Hotel St. Regis, em Nova York, nos Estados Unidos. A reprodução da conversa, resgatada pelo “Blog do Acervo”, abaixo, deixa claro que o surrealismo de Dali não estava apenas em seus quadros.

Ver Salvador Dali é o mesmo que se tocar numa tomada. Depois do choque, a primeira reação; certificar-se de que está acordando e não sonhando e depois lançar um olhar zangado a este todo poderoso, que parece ler ligação direta com alguma central elétrica através de seus olhos fora das órbitas e dos bigodes fartos, onde Satanás brinca de subir e descer.

Logo a seguir, a sensação de absoluta confusão. Que fazer com quem o cumprimenta, com os dedos e fala sem encará-lo, como se você fosse um simples jarro ou uma mesa a mais no ambiente? Como manejar um entrevistado que não quer ruído nem gravador e que responde a mil quilômetros por hora e que, além disso, se mostra nervoso por esperar pelo mínimo de anotações? Mas, não se pode esquecer que Dali é um excêntrico sonâmbulo que se apraz em brincar de gato e rato com o próximo, especialmente quando se trata de jornalista. Quando entrei na sua suíte do luxuoso Hotel St, Regis, tudo estava- às escuras. Logo, uma vela é acesa à altura do seu rosto de:

– Olá, sou Salvador, sirvam-se o que quiserem.

E desapareceu, tragado pela escuridão. Segundos depois. Reapareceu:

– Eu sou aquele que você viu, mas também sou o que não foi visto,

E como é que não o vi?

-Um Dali molecular, produto do choque entre a luz e a escuridão.

E como é aquele que está agora comigo?

– Um Dali planetário, que está casado com a mesma mulher desde o ano 35; Gala, meu outro eu, minha melhor crítica, a única a quem realmente escuto. Além disso, este Dali não fuma nem bebe…

Também não se droga?

– Por que teria que usar drogas num mundo de gente com alucinações, onde as teorias (como a da relatividade) somam às três dimensões do espaço uma quarta, que é o tempo, a mais surrealista de todas as dimensões espaciais. Nunca tomei drogas porque EU SOU A DROGA. Que me tomem a mim, eu sou a droga, eu sou alucinógeno. Sabe o que Titmothy Leary disse de mim? Ele, que não é nada menos que o profeta do LSD? “Dali é o único pintor da era do LSD sem LSD”.

Capa do caderno que trazia a entrevista exclusiva de Salvador Dali ao Globo

Como você se pinta, parece que este Dali é um conservador…

– Em parte, sim. Mas eu diria que Dali foi sempre um monarquista e simultaneamente um anarquista. Porque eu não bebo nem fumo e admiro Franco por um lado e, por outro, tenho em minha carteira um retrato do Lenin, outro de Marx e um terceiro de Engels. Não nos esqueçamos que os dois fundadores do anarquismo foram o príncipe Kropotkin e o principesco Bakunin. Isto sim, estive e sempre tenho estado contra a burguesia. Apesar de tudo a verdadeira revolução cultural será o restabelecimento das hierarquias monárquicas.

Isto é uma salada incompreensível, Mestre…

– Isto é precisamente o que é este Dali, uma boa salada…

Ele se levanta e torna a desaparecer, instantes depois retorna com uma desculpa. “Perdoe-me; é que sou muito esquecido. Minha mulher, Gala, sempre tem que por lembretes nos bolsos das calças e paletós com endereço e nome das pessoas que vamos visitar. Inclusive a hora da visita, porque se dependesse de mim, já estaria brigado com todo mundo. Olhe que curioso. Eu, um homem tão apegado às mudanças, faz mais de quinze anos que venho a este mesmo hotel, o St. Regls, e como sempre o mesmo prato, no mesmo restaurante e nunca me atrevo a me levantar de uma mesa com convidados, porque sou capaz de aparecer em qualquer lado sem saber como e nem a razão de estar lá. Tudo por causa de minha bendita má memória, sou quase um escravo dela.

IMAGENS HIPNAGÓGICAS

'A persistência da memória' é uma das obras mais conhecidas de Dali

E que o faz perder a memória, o que o distrai tanto?

– Olhe, antes, quando eu estava filiado ao movimento surrealista, era porque estava sempre tratando de decifrar os meus sonhos. Fui um fanático seguidor de Karl Jung e sua teoria sobre o inconsciente pessoal e coletivo. E acontecia fechar os olhos durante o dia para recordar o que sonhava à noite c plasmá-lo em tinta. Agora é diferente. Hoje sou distraído porque procuro decifrar as imagens hipnagógicas…

Que é isto?

– É encontrar o inconsciente na genética, ou seja, a memória atávica. Em outras palavras, são imagens que vemos quinze minutos antes de dormir…

E que vê Dali quinze minutos antes de dormir?

– Em geral vejo seis Dalis: um sob a forma de Gala, outro como Napoleão, um terceiro como gênio, o quarto como pintor, um quinto como cosmólogo e o último como hológrafo. Gala é o primeiro Dali porque tornei a nascer através dela; Napoleão tinha vocação paranoica e eu sou igual; o gênio, o pintor e o cosmólogo estão unidos por uma imagem comum; Dali em pé sobre a Terra c jogando tinta por um buraco até anulá-la e convertê-la em outro ser, um novo planeta no espaço que antes de se lançar através do Universo vai me absorver pelo buraco onde antes havia filtrado a tinta. E o Dali hológrafo é o Dali atual, o que vive em três dimensões e une a Arte coma Tecnologia em uma espiral única que volta, a Gala, a mãe de todo Dali.

Entrevista com Salvador Dali, publicada pelo GLOBO em 1973

Quer explicar um pouco o que é a holografia e por que a tomou como forma de expressão a esta altura de sua vida?

Mas você crê em Deus?

– Leibnitz…

Mestre, eu lhe pergunto sua ideia de Deus, da imortalidade da alma…

-Leibnitz…

Noto que a temperatura sobe; levanta-se, examina umas cartas, ignoram-se completamente. Quando se aborrece, os olhos são dois planetas enlouquecidos que olham sem ver. Penso que tenho queijo suficiente para a nota e me disponho a prosseguir antes que me interrompa. Mas o telefone soa: é um hippie que o convida a uma manifestação. Protestar em frente ao Museu de Arte Moderna contra Dadá? Gritar abaixo a arte e viva a revolução? Olhe, os hippies me encantam, mas são muito ignorantes; vocês como movimento estão cinco anos adiantados, não por sabedoria mas porque saíram a gritar sem ter lido antes. Informem-se primeiro e venham ver-me depois. Dadá protestou contra a burguesia, claro, mas pela aristocracia e não pelo homem da rua. Vocês são homens da rua.

A VOLTA DO MASOQUISMO

Salvador Dali, ao lado de Walt Disney, na Espanha, em 1957: os dois planejaram juntos o curta 'Destino'

Como vê então os tempos mordemos?

– Depois desta dolorosa etapa promíscua, renascerá o masoquismo; os homens terão que esperar que as damas venham a eles. E odeio o erotismo atual porque a gente jovem se despreocupa em relação ao amor. A roupa moderna marca toda a anatomia e não fica nada para o mistério. Verá como em breve a moda voltará às túnicas dos tempos de Velásquez.

Se a esta altura dos acontecimentos o leitor imaginar Salvador Dali um senhor conservador que envelhece, dou-lhe razão. Se o toma por uma personalidade original que ri de tudo e dele próprio, correto. Se o classifica como um excêntrico genial com momentos de loucura, também estou com você. Porque em verdade não há um Dali somente, senão um coquetel de Dalis que se reúnem nesse senhor catalão e elegante de 69anos. Um coquetel que às vezes é doce, outras amargo e, muitas ácido, mas que igualmente se faz notar por sua carga elétrica, totalmente contraditória.

Senão, como se explicaria que após algumas resposta bem argumentadas, e sisudas mesmo, diga agora esta barbaridade: “O homem adquire sua verdadeira personalidade face aos outros somente quando leva um animal a seu lado. Por isso, tive primeiramente um elefante, Surus, depois um urso e mais tarde um ocelote. Agora encomendei um rinoceronte porque estou numa etapa ultraterrestre, e os rinocerontes são os animais mais cósmicos do mundo. Digo-lhe mais, às vezes um animal assume nossa personalidade; por isso, numa exposição, em Marbella, mandei que meu cavalo me substituísse na inauguração. E para fazer honra a seu dono, ele negou-se a tomar bebidas alcoólicas…”

E outro comentário: “Um dia nos encontramos em um café de Paris, Luis Buñuel, Joan Miro, Picasso e eu, c surgiu o lema de se valia apena, depois de tudo, fazer arte ou não. Picasso disse-me algo genial: “Eu creio que sim, porque somos tão bons e úteis como os bobos das cortes, que os reis costumam ter em seus palácios para entretê-los, fasciná-los ou aborrecê-los”.

Diga algo sobre seus amigos, Buñuel, Picasso e Joan Miro…

– Respondo-lhe com uma frase de Eugênio Montes, da Academia Espanhola: “Uma das poucas coisas que podes ser é espanhol”, e os três são indiscutivelmente espanhóis.

Agora Dali golpeia repetidamente o chão com a bengala. Em sua linguagem surrealista significa que tenho de levantar acampamento. Antes de ir, digo que ficaram muitas perguntas por responder e ele então apoiou-se no bastão, colocou os óculos e fez o que podia ser tido como um inventário de suas ideias e gostos.

– Verei sempre sem que me agrade o jazz ou a escultura chinesa. Nunca fui um pacifista. Nunca gostei de meninos, do sufrágio universal, e nem da arte moderna, El Greco ou a teosofia.

Ponto final: Para que prosseguir? Isto é Dali puro, da cabeça aos pés.

Blog Acervo do Globo

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *