Semelhanças e diferenças nos protestos franceses de hoje e de 1968

As multidões que hoje protestam, apoiadas quer pela extrema direita, quer pela esquerda populista, não miram mais longe do que o próprio umbigo

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Por JOSÉ EDUARDO AGUALUSA

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. / Muda-se o ser, muda-se a confiança: / Todo o mundo é composto de mudança”, escreveu Luís de Camões num dos seus sonetos mais famosos, e tão atual que poderia ter sido escrito esta manhã por algum poeta inquieto e aturdido. Prossegue Camões: “Continuamente vemos novidades, / diferentes em tudo da esperança: / do mal ficam as mágoas na lembrança, / e do bem (se algum houve) as saudades.”

Suponho que com o verso “diferentes em tudo da esperança” pretendia o poeta dizer que nunca somos capazes de prever aquilo que o futuro nos traz. Sabemos que virão mudanças, revoluções, acontecimentos inéditos, mas raramente acertamos quanto à sua exata natureza.

Ninguém previu, por exemplo, o atual renascimento da extrema direita e a inquietação que se vem instalando nas democracias (aparentemente) mais sólidas.

Os recentes confrontos na França, entre manifestantes e policiais, que talvez se repitam no decurso deste fim de semana, têm sido comparados aos ocorridos em maio de 1968. Na perspectiva dos carros incendiados e dos seus assustados e indignados proprietários, são certamente semelhantes. Mas serão?

Só até um certo ponto. Na origem do levantamento dos estudantes, estiveram reivindicações pontuais de escassa relevância, como a mudança das disciplinas curriculares. Quando os jovens começaram a incendiar carros e a erguer barricadas no Quartier Latin, porém, já se discutia a guerra do Vietnã, o fim do capitalismo, o papel das mulheres na sociedade e de Deus na vida dos homens. Logo os sindicatos se juntaram aos estudantes e os protestos generalizaram-se.

Na origem das atuais manifestações está também um pretexto cuja urgência é discutível: o aumento do preço do diesel, como parte de uma política governamental de abandono progressivo dos combustíveis fósseis. Da mesma forma que no caso do maio de 1968, juntou-se a esta primeira reivindicação uma longa lista de outras, que vão desde a redução de todos os impostos ao aumento do salário mínimo, passando pela melhoria dos serviços públicos. Há até quem queira que Macron, o jovem presidente francês, seja substituído por um general.

Outra semelhança com a insurreição de 1968 é o fato de os manifestantes não se fazerem representar por nenhuma organização ou liderança explícita.

A principal diferença — na verdade uma abissal diferença! — tem a ver com a ideologia que impulsiona os dois movimentos: os estudantes franceses eram ingênuos, desordeiros, confusos. Movia-os, contudo, um desejo sincero de melhorar o mundo. Nas ruas de Paris, juntamente com os coquetéis Molotov, explodiram ideias que nas décadas seguintes haveriam de se afirmar autenticamente transformadoras e revolucionárias, do movimento feminista ao ecologista. Já as multidões que hoje protestam, apoiadas quer pela extrema direita, quer pela esquerda populista, não miram mais longe do que o próprio umbigo.

Até a mudança vem mudando. É como se, com o tempo, o tempo estivesse pouco a pouco apodrecendo. Camões, no soneto que refiro acima, chega exatamente a tal conclusão: “não se muda já como soía” — ou seja, como era costume acontecer. Triste verdade.

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