A desconexão em um mundo hiperconectado

A necessidade de se manter afastado das tecnologias em um mundo que clama por conexão

A desconexão em um mundo hiperconectado
Digital Wellbeing prega o uso consciente das novas tecnologias (Foto: Pixabay)
Henrique Schmidt

As novas tecnologias inundaram o cotidiano nos dias atuais. Smartphones, smartwatches e tablets já fazem parte da realidade dos brasileiros. Em um mundo hiperconectado, ficar offline tem sido cada vez mais difícil, visto que tudo está a um clique de distância. Essa facilidade, porém, causa um grande problema cada vez mais comum: a dependência digital.

Se o desejo é por comida, basta acessar o Ifood. Se quiser ir a algum lugar, chame um Uber. Se o objetivo for conversar com alguém, abra o WhatsApp. Quer ver os seus amigos? Tudo disponível no Facebook e Instagram. E assim por diante.

Paralelo a todos esses benefícios e facilidades, foi-se descobrindo os malefícios e impactos que as novas tecnologias têm o potencial de causar ao corpo, mente e vida social dos seres humanos. Descobriu-se o vício em tecnologia, moderado e pesado – os famosos heavy users – e a nomofobia, termo que provém da junção das palavras em inglês “no”, “mobile” e “phobia” e significa o pavor de ficar sem o celular.

Esses problemas parecem ainda mais graves nas gerações mais novas. Em um artigo publicado na revista Atlantic, o psicólogo Jean Twenge, que estuda a influência da tecnologia em seres humanos, destacou que os mais jovens estão crescendo totalmente imersos num mundo de tecnologia, ao contrário do que aconteceu com seus antecessores. O especialista os chama de “geração iGen”.

“Nascidos entre 1995 e 2012, os membros desta geração [iGen] estão crescendo com smartphones, têm uma conta no Instagram antes de começarem o ensino médio e não se lembram de um tempo antes da internet. Os millennials cresceram com a web também, mas não estavam sempre presentes em suas vidas, a qualquer hora do dia e da noite”, afirmou o psicólogo.

Em contrapartida a todas essas questões, surge outro movimento: o bem-estar digital (Digital Wellbeing) – para o caso de vício em tecnologia ou algum tipo de dependência , o detox digital.

Algumas empresas de tecnologia, como Google, Apple e Facebook, já criaram novas maneiras de manter o controle sobre o tempo que passamos conectados aos aparelhos eletrônicos. Uma versão do Android nos Estados Unidos, por exemplo, permite ver quanto tempo cada usuário passou conectado ao celular.

O Facebook também anunciou que planeja uma interface similar para o seu aplicativo, e para o Instagram, permitindo que o usuário controle quanto tempo tem passado conectado. A novidade foi anunciada no início de agosto, com previsão de início para as semanas seguintes. No entanto, até a publicação desta reportagem, a função não estava disponível para todos os celulares.

As iniciativas vão de encontro com comunicados, pesquisas e notas públicas feitas por associações e centros de estudos. O grupo de investimento Jana Partners, em parceria com o fundo de aposentadoria de professores da Califórnia, o CalSTRS, publicou uma carta aberta no início de 2018 apontando uma série de pesquisas, demonstrando preocupação com os efeitos viciantes das novas tecnologias.

Já no Canadá, um estudo de dezembro de 2015 reuniu 2,2 mil professores e diretores de Alberta. Os profissionais de educação reconheceram a importância dos celulares, inclusive para pesquisas e comunicação, mas dois terços afirmaram que os aparelhos eletrônicos são uma distração crescente nas salas de aula. Ademais, três quartos deles apontaram que as crianças estão com dificuldade de se concentrar, e outros dois terços informaram que os jovens estão indo com sono para a escola.

Dependência tecnológica

“O vício em tecnologia se instaura quando a pessoa dá mais valor, despende mais tempo conectada do que fazendo suas atividades diárias, como estudar, trabalhar, socializar. O IAT (internet Addiction Test), da Kimberly Young, traduzido para o português pela equipe do Dr. Cristiano Nabuco, é um bom parâmetro para identificar a compulsão por internet, além disso, a qualidade do uso e impactos da vida ‘offline’ desta pessoa importa para identificar se a pessoa é dependente, usa em excesso e lhe traz prejuízos”, explicou o psicólogo Felipe Augustto Botelho, da equipe de dependências tecnológicas do Pro-Amitti, do Instituto de Psiquiatria (IPQ) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), em entrevista ao Opinião e Notícia.

Foto: PxHere

Foto: PxHere

Inúmeras pesquisas na área apontam para a influência do contínuo uso da tecnologia no desenvolvimento de doenças e condições mentais, como a depressão, o aumento da sensação de solidão, a dificuldade de interação social sem o intermédio da tecnologia, entre outros problemas.

“No decorrer do tempo se instaura uma falta de repertório e daí vem as comorbidades como: ansiedade, depressão, fobia social, entre outras. É difícil dizer se as comorbidades vieram antes ou depois. Por exemplo, se o dependente tecnológico adquiriu uma comorbidade ou se ele já apresentava esta e com isto colaborou para ser um adicto em tecnologia”, apontou Felipe Botelho.

Em alguns casos, o vício em tecnologia foi tamanho, que causou vítimas fatais. Ainda raras, existem pessoas que morreram após longas maratonas de jogos eletrônicos – tanto que a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou o vício em videogame como uma doença mental.

“Essa preferência pelo mundo virtual, no qual a pessoa se sente mais protegida, está atrás de uma tela, passa inúmeras horas conectada em redes sociais, jogos online, entre outros, – é mais do que as horas, a qualidade do uso importa – ocorre também o afunilamento temporal, que é quando perdemos de vista quanto tempo estamos online”, apontou Botelho.

No entanto, o psicólogo também chama a atenção para o risco de confusão entre um usuário assíduo, e necessário, da tecnologia e o verdadeiro vício. Segundo Felipe Botelho, a qualidade do uso da tecnologia também importa.

“Se você está trabalhando, resolvendo alguma questão prática, como pagar uma conta de banco, fazendo um curso, esse tempo não é considerado como vicio. Mas, dependendo do tempo e importância, é um fator de risco. A vida dos dependentes tecnológicos fica restrita, geralmente diminui sua vida social, a atenção também é prejudicada, muitas vezes aumenta a irritabilidade”, completou o psicólogo.

Em alguns testes disponíveis em organizações especializadas em lidar com a dependência de tecnologia, como o Instituto Delete e o setor da Pro-Amiti, é possível verificar se o usuário tem problemas com vício de internet ou é apenas assíduo na rede. Caso a resposta seja positiva para o problema, o usuário deve começar a se policiar e, se necessário, procurar ajuda especializada para trabalhar a autorregulação.

“Atualmente, é quase impossível viver sem a tecnologia, em nosso programa nós trabalhamos com a autorregulação, na qual se tem uma maior consciência do uso, do tempo e da sua qualidade, não se restringe, mas tem como objetivo regular o uso, para que este, progressivamente, deixe de ser abusivo, fora do padrão que atrapalhe a vida desse indivíduo”, afirmou o psicólogo, explicando que o programa do Pro-Amiti tem duração de 16 semanas, com 16 encontros, discutindo os usos positivos e negativos da tecnologia, entre outras temáticas.

Bem-estar digital

O movimento Digital Wellbeing não quer banir as novas tecnologias nem censurar seu uso. A iniciativa, que é mais presente no exterior e conta com participação de algumas empresas tecnológicas, prega o uso consciente dos aparelhos eletrônicos e das redes sociais, equilibrando melhor o tempo entre a vida digital e a real.

Devido à necessidade de um controle maior sobre o tempo gasto com os aparelhos eletrônicos, alguns aplicativos começaram a ser desenvolvidos, permitindo que o usuário saiba como tem gastado seu tempo com o dispositivo. Um dos mais famosos para o sistema Android é o Quality Timeque dá acesso a relatórios em tempo real sobre como o usuário está usando seu tempo no celular. Ainda na tela de bloqueio, por exemplo, o aplicativo mostra quantas vezes o smartphone foi desbloqueado.

No entanto, nem todos os usuários apelam para outros aplicativos para combater o uso contínuo dos aparelhos eletrônicos. É o caso da arquiteta e influenciadora digital Maria Luiza Canedo, de 31 anos, que passou por um período de 30 dias afastada das redes sociais; e da blogueira Bruna Matos, de 30 anos, dona do blog “Virando Vegana”, que se afastou das tecnologias em duas oportunidades, ambas entre a noite de sexta-feira e a manhã de segunda-feira.

Por atuarem nas redes sociais, as influenciadoras digitais têm o costume de fazer postagens diárias nas mídias, por vezes em mais de uma oportunidade. Dessa forma, é de se imaginar que seria difícil para elas se manterem afastadas da internet durante esse período “sabático”. Bruna Matos, porém, afirmou que seu maior obstáculo foi o medo de estar perdendo algo importante. “Mas estava com a decisão tomada, então não enfrentei dificuldades”, explica a blogueira.

Maria Luiza, porém, admitiu ter enfrentado dificuldades. Apesar de classificar a experiência do detox digital como “libertadora”, a arquiteta destacou o longo período em que atua como influenciadora digital – mais de três anos – e o medo de perder a audiência durante o tempo que ficou afastada.

Foto: PxHere

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“Como eu trabalho como influencer há mais de 3 anos, no início fiquei com receio de perder audiência e trabalhos com marcas, assessorias e parceiros, mas sabia que essa atitude seria importante para mim. Foi uma mudança de rotina, pois eu vivia a maior parte do meu dia produzindo conteúdo para o blog e redes sociais. Ao mesmo tempo que foi libertador ter tempo para viver uma vida offline, também senti falta da minha rotina de trabalho como produtora de conteúdo”, explicou Maria Luiza, em entrevista ao O&N.

Bruna Matos também viu grandes benefícios nos períodos em que se manteve afastada. De acordo com a blogueira, os dias rendiam mais, com mais tempo para fazer as tarefas. Isso a fez perceber o quanto as redes sociais ocupavam o seu tempo diariamente.

Dessa forma, Matos aponta que a possibilidade de “dedicar mais atenção a mim mesma, fazer as coisas com mais calma, curtir o momento sem ter que registrá-lo, dar a devida atenção às pessoas, sem ter o telefone como barreira nas interações pessoais” foram os principais benefícios desse período de detox.

A blogueira afirma ainda que, apesar de ter usado o período afastada da internet para se dedicar a si mesma, ela pôde notar uma melhora nas relações pessoais, estando “mais presente”, dando “mais atenção” às pessoas. Enquanto isso, Maria Luiza destaca a sua reconexão com o mundo, “meu entorno, meus valores, amigos e familiares”.

“Nas redes sociais estamos constantemente ‘vivendo’ a vida dos outros, e isso pode afetar nossas emoções e também gerar insatisfações sem sentido. Quando paramos para viver a nossa vida, a nossa realidade, conseguimos alinhar os nossos objetivos sem nenhuma interferência, e assim nos dedicarmos para conquistá-los. E quando eu voltei do detox digital, não havia perdido audiência ou trabalho, foi ótimo”, apontou a arquiteta.

Para as influenciadoras digitais, “equilíbrio” se mostrou a palavra mais importante para manter a vida, digital e social, em ordem. Maria Luiza revelou que sempre nutriu bons relacionamentos com as outras pessoas, mesmo com as redes sociais, mas admitiu que, durante os encontros no período em que esteve afastada das mídias, ela já não tirava mais o celular da bolsa. “Eu estava plenamente focada naquele instante, e no quanto é gostoso viver, também, sem compartilhar”, explica a arquiteta.

Já Bruna Matos, por fim, disse que ainda busca um equilíbrio, mas afirmou que, após os períodos de desconexão, tem organizado melhor o seu tempo para não “sacrificar” outras atividades. “Sigo na busca do equilíbrio, me desconectando mais, me permitindo dias off-line ou dias sem postar conteúdo”, conclui a blogueira.

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