‘Uma Noite de 12 Anos’ e uma outra apenas começando

Filme sobre tortura e resistência à barbárie durante ditadura no Uruguai nos vem terrivelmente a calhar

‘Uma Noite de 12 Anos’ e uma outra apenas começando
Filme retrata os suplícios a que guerrilheiros, entre eles Mujica, foram submetidos (Foto: Divulgação)
Hugo Souza

O Cine Arte UFF resiste. Ele é o último, aquele que restou dos antigos cinemas de rua de uma cidade que já foi repleta deles: Niterói, “a cidade dos cinemas fechados”, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Em Niterói existe, resiste como seu cine, a Universidade Federal Fluminense, fundada em 1912. Fica lá também o Niterói Plaza Shopping, inaugurado em 1986, com suas atuais oito salas Cinemark dedicadas ao Capitão América e outros heróis da Marvel Comics, e, eventualmente, a pelo menos um outro capitão, um aclamado capitão nacional. Não se trata propriamente do capitão ora “com a mão na faixa”, mas daquele outro, capitão do Bope, “caveira” — ambos, porém, “mitos” e “osso duro de roer”.

Os niteroienses nostálgicos de coturnos apertando o pescoço alheio talvez comentem durante algum jogo de damas que o declínio dos cinemas de rua da cidade começou – bingo! – após o fim da ditadura, a exemplo, como se sabe, da corrupção, da degradação moral e da violência urbana. Essa violência (nunca a especulação imobiliária, claro) que a muitos roubou o prazer de sair tarde do cinema diretamente para a rua; o prazer de digerir o impacto do filme na alma caminhando devagar no fresco da noite, em vez de correr para pagar o parking; o prazer de pensar livremente com o filme ainda fresco na impressão, em vez de contar quanto tempo ainda sobra para passar com o carro no automático da cancela.

Ainda sobre os automáticos dessa vida: para esses saudosistas, pensar livremente nunca foi a maior diversão. Resistindo, portanto, o Cine Arte UFF fica no térreo do prédio da reitoria da universidade. Da frente desse prédio saiu, às 9:00h do último sábado, 20 de outubro, a marcha Niterói Pela Democracia, de apoio à candidatura de Fernando Haddad à presidência da República. No dia seguinte, domingo, 21, também às 9:00h, e quase do mesmo local, saiu uma grande passeata de apoio à candidatura de Jair Bolsonaro. No dia 30 de setembro, Flavio Bolsonaro, ainda em campanha para o Senado, já tinha levado uma multidão à praia de Icaraí. Vestia, naquela ocasião, uma camisa retrô da seleção brasileira de futebol, remetendo a mais de meio século atrás.

Depois dos dois atos do fim de semana, na segunda, 22 de outubro, às 16:40h, começava mais uma exibição no Cine Arte UFF do filme “Uma Noite de 12 anos”, que retrata os inimagináveis suplícios físicos e psicológicos a que três guerrilheiros tupamaros, entre eles José “Pepe” Mujica, foram submetidos por anos a fio na condição de presos políticos da ditadura uruguaia, entre as décadas de 1970 e 1980. Portanto, ainda ontem.

Ainda ontem, cena um: a família do guerrilheiro preso e incomunicável Mauricio Rosencof começa a fazer barulho demais. A ditadura uruguaia, então, permite uma breve visita ao “Russo” na prisão, para que sua família possa ver com os próprios olhos que ele está “bem”. Vão seus pais, já muito idosos, e sua filha, ainda uma menininha que mal consegue enxergar, que mal consegue entender tudo o que está acontecendo em seu país. A filha conta ao pai que começou a usar óculos, e conta também que, sempre que põe os óculos, começa a chorar.

Ainda ontem, cena dois: a mãe de Mujica chega de ônibus a um presídio do interior com a informação extraoficial de que é ali que seu filho está encarcerado. Ela entrega seus documentos na guarita. Os militares a fazem esperar indefinidamente na porta do presídio. Anoitece, começa a chover forte, mas Lucy Cordano permanece imóvel, encharcada, firme, esperando. O guarda pergunta se ela gostaria de esperar lá dentro. “Estou bem aqui”, responde. Mais tarde, ainda chovendo, escuro, o guarda chama a mãe de Mujica para dizer que não há qualquer informação a lhe dar. Segue-se o diálogo:

– Mas meu filho está aqui?

– Não tenho essa informação.

– Como posso saber onde ele está?

– Não tenho essa informação.

– Que informação você tem?

– A informação que eu te dei.

– E que informação você me deu?

– Não tenho essa informação.

Quando finalmente consegue descobrir onde seu filho está, quando consegue visitá-lo na prisão, Lucy passa um sermão, com direito a grito e tapa na mesa, no futuro presidente da República Oriental do Uruguai, ao perceber que a ditadura estava prestes a conseguir que ele perdesse o controle sobre os próprios nervos: “Resista, Pepe, resista! Só é derrotado quem desiste!”.

Ainda ontem, cena três: por causa da pressão “dos Direitos Humanos”, como diriam aqueles saudosistas, os militares levam Mujica a uma consulta médica. A médica pergunta a Mujica se ele se alimenta bem, se faz exercícios, etc. Diz a ele que vai receitar remédios para dormir. “Você precisa dormir”. Mujica, que na prisão se alimenta de insetos, mal se movimenta e é diuturnamente submetido a torturas, Mujica olha para a médica como quem reconhece a mais perfeita cínica. “Doutora, eu só preciso parar de pensar”, diz, sabendo que está a um passo da loucura. A médica pede para o soldado que acompanha a consulta ir buscar-lhe um pouco d’água. Quando o guarda sai, a médica chama Mujica duramente à realidade objetiva, à necessidade incontornável, à obrigação, que remédio, de se agarrar no que for possível, porque há sempre algo em que se agarrar. “Falta pouco”, diz, antes do soldado voltar.

Ainda ontem, cena quatro: já nos estertores da ditadura, os três tupamaros começam a ter um pouco relaxado o regime de quase total isolamento e confinamento a que por mais de uma década haviam sido submetidos. O terceiro deles, Ñato, quando é deixado sozinho no pátio de um presídio, logo é reconhecido por outros presos políticos que se apertam nas minúsculas janelas das celas que circundam o pátio. Das celas, começam a gritar: “Ñato! Ñato!”. Pois Ñato, comovido, começa a simular que recebeu uma bola nos pés e parte com tudo, confiante, num ataque alegórico contra a meta adversária, ou melhor, contra um portão cheio de guardas. Ele vai encenando dribles, sob aplausos da galera encarcerada, e finalmente chuta forte. Das celas, a galera grita: “goooool!”. Os guardas, estupefatos, zonzos, giram suas cabeças ocas atrás da trajetória da bola imaginária chutada para fora dos limites do cárcere. Não era futebol retrô. Era o futuro. A ditadura estava prestes a acabar e os presos políticos já já seriam libertados.

No fim da sessão, por volta das 19:00h, poucos se levantaram imediatamente. Muitos permaneceram algum tempo nas poltronas, abraçados a quem estava ao lado: casais, amigos, irmãos, pais e filhos, quem sabe alguns desconhecidos. Mal conseguiam ter algo a dizer, a gritar. Um ou outro gritos de “Ele não!” romperam o silêncio sufocante, tenso, quando as pessoas finalmente reuniram forças para ir embora. Um senhor, muito idoso e muito ansioso por gritar alguma coisa diante do que acabara de assistir, gritou algo sobre a ditadura uruguaia ter sido pior que a ditadura brasileira. Houve reações de repúdio. Teve confusão. Há muita confusão. Tinha muita raiva, indignação, tinha medo, mas tinha, acima de tudo, no fim do filme, uma muito doída comoção. Uma profunda comoção, ao fim de “Uma Noite de 12 Anos”, por antever uma outra começando, para além do crepúsculo da segunda-feira última, com indicativos de todos os suplícios próprios das caladas da História.

A porta de saída da última das grandes salas de rua da “cidade dos cinemas fechados”, neste país aberto ao inferno, dá para um caminho de pedras irregulares ladeado por um muro coberto por hera verde. Saímos por ali, caminhando devagar, pensando, sofrendo, chorando não exatamente sob o frescor, mas sob o peso da noite que cai. Resiste, o Cine Arte UFF.

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