Por Fernando Gabeira – O Globo
Bolsonaro terá de moderar retórica. E oposição precisa tomar consciência da situação delicada em que o país entra
Lula está preso, meu caro. Repito a frase de Cid Gomes que ecoou na rede, suprimindo a palavra babaca. Não por correção política. A palavra iguala a estupidez à vagina. Apenas para lembrar, com humildade, como certos sentimentos estão arraigados em nossa cultura e emergem de nosso subconsciente.
A líder da direita francesa, Marine Le Pen, afirmou que algumas frases de Bolsonaro são inaceitáveis na França. Mas não o foram no Brasil.
Humildade aqui significa reconhecer que mudanças culturais levam tempo para se consumar. Não são como uma ponte destruída pela chuva que se reergue rapidamente. Nem mesmo uma nova capital que pôde ser construída no Planalto. Às vezes, atravessam gerações.
Lula está preso. É natural que o PT não aceite isso. Mas a forma de recusar foi chocar-se diretamente com a Justiça, tentar dobrá-la com manifestações, apoio externo e uma inesgotável guerra de recursos legais.
Compreendo que isso era visto como uma forma de acumulação de forças. Mas, na verdade, também acumulou rejeição.
Quando Haddad foi lançado, cresceu rapidamente exibindo a máscara de Lula. No segundo turno, a máscara envelheceu como o célebre retrato de Dorian Gray.
Mas o período que se abre agora será de tanto trabalho, que talvez não tenhamos mais tempo para nos patrulharmos. São tempos complexos, que demandam mais humildade ainda.
Num debate em São Paulo, depois do primeiro turno, confessei como o processo me surpreendeu. As pesquisas indicavam uma grande vontade de renovação. Quando os partidos se destinaram quase R$ 2 bilhões para a campanha, concluí que a renovação seria mínima.
Apesar de ter feito algumas campanhas no território digital, minha reflexão ainda se dava no quadro analógico. A renovação, cuja qualidade ainda é discutível, aconteceu. Com R$ 53 milhões, Meirelles teve menos votos do que o Cabo Daciolo, um exemplo de como os velhos parâmetros foram para o espaço.
As próprias pesquisas que tanto critiquei no passado porque achava que favoreciam Sérgio Cabral, hoje as vejo com nostalgia. Existe informação na pergunta clássica em quem você vai votar.
Mas, para detectar tendências, é preciso um oceano de dados e capacidade de análise. As pesquisas envelheceram, sem que muitos se dessem conta. Mas não apenas elas envelhecem, num mundo em que a inteligência artificial avança implacavelmente.
E é nesse mundo que teremos de navegar. A situação econômica internacional não é favorável como no passado. Nos artigos em que trato de alguns de seus aspectos, começo sempre com o paradoxo: os Estados Unidos, que lideraram uma ordem multilateral, decidiram abandoná-la. Será preciso mais do que nunca acertar os passos aqui dentro. Isso significa gastar menos, fazer reformas.
Quando estava na Rússia, os primeiros protestos contra a reforma da Previdência foram abafados pelo oba-oba da Copa do Mundo. Soube que agora a popularidade de Putin caiu 20 pontos precisamente por causa dela. Em outras palavras, a vida não é nada fácil para quem precisa reformar o Estado e fazer um ajuste fiscal.
Nesse futuro tão nebuloso que nos espera, a tese do quanto pior melhor é atraente, no entanto, pode ser também um novo erro de avaliação.
Quando ficamos muito concentrados nos problemas internos, perdemos um pouco de vista nossa inserção internacional. A imagem do Brasil lá fora mudou. O próprio Bolsonaro começará seu mandato como um dos presidentes mais rejeitados pela imprensa planetária. Ele terá de moderar sua retórica. E quem faz oposição precisa tomar consciência da situação delicada em que o país entra.
A sobrevivência da democracia não está ameaçada. Mas algumas escoriações podem empurrá-la para o viés autoritário que hoje cresce no mundo.
As fake news, por exemplo, sempre existiram, mas hoje têm um peso maior, pelo alcance e velocidade. Utilizá-las sem escrúpulos e denunciá-las no adversário apenas confirma o pesadelo moderno da decadência da verdade.
É muito difícil chamar à razão a quem se considera o dono dela. Os intelectuais condenam as escolhas populares, mas, às vezes, não percebem a sede de sinceridade que há por baixo delas. Pena.