Telegrama confidencial dos EUA detalha a corrupção na ditadura militar

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Maluf e Delfim são mencionados como “corruptos”

Leandro Loyola
O Globo

Como era de sua rotina, no dia 1º de março de 1984, a Embaixada dos Estados Unidos no Brasil despachou para o Departamento de Estado, em Washington, o telegrama com carimbo “confidencial” número 1413z. Era um dos grandes. Impresso, preenche quatro páginas — três delas com o texto digitado em duas colunas com letras bem pequenas. O conteúdo era extenso porque o tema era vasto: a corrupção no país.

O assunto dominava o noticiário à época e, segundo os informantes americanos, não apenas enfraquecia o governo de João Figueiredo (1979-85), como indicava o apodrecimento e o fim próximo da ditadura militar, no poder desde 1964.

COMISSÃO DA VERDADE – O telegrama, obtido pelo Globo, faz parte de um lote de 694 documentos enviados pelo governo do então presidente Barack Obama ao de Dilma Rousseff. Foram três remessas, entre 2014 e 2015, para a Comissão da Verdade, que examinou abusos de direitos humanos durante a ditadura. Devido ao prazo curto para o relatório final da Comissão, vários deles deixaram de ser analisados.

Numa introdução didática para burocratas de Washington, o telegrama explica o que é o “jeitinho”, um fenômeno social brasileiro, seu papel na prática cotidiana e como, devido a isso, a corrupção seria parte indissociável da política e da economia no país. A partir daí, o texto traça um quadro da decadência do governo Figueiredo, ao mencionar uma série de acusações de corrupção. “No nível nacional existem muitos escândalos que lançam nuvens sobre o governo Figueiredo”, diz o informe.

DELFIM CORRUPTO – Certamente o homem mais poderoso na economia durante o regime militar, o então ministro do Planejamento, o economista Delfim Netto, é citado como um exemplo de alvo de acusações do alto escalão de Brasília. São dois os casos.

Num deles, o das polonetas, havia suspeitas em torno de empréstimo de US$ 2 bilhões à Polônia a taxas de juros consideradas baixas. Em outro, um documento conhecido como “relatório Saraiva” — que nunca veio a público na íntegra — acusava Delfim de, quando embaixador em Paris, receber propina para intermediar negócios entre bancos estrangeiros e estatais brasileiras.

“Nas polonetas, o governo da Polônia pagou, em um momento de grande dificuldade para o Brasil, US$ 3 bilhões. O relatório Saraiva foi arquivado pelo SNI porque não havia nada de concreto” — diz Delfim, que minimiza o papel dos informantes americanos. “Esses funcionários vinham para o Brasil e fingiam trabalhar enviando a Washington informações que já estavam em todos os jornais”.

MANDIOCA – Como diz Delfim, o informe de 1984 não cita casos desconhecidos do público. Tampouco há informações secretas. Estão lá menções ao escândalo da mandioca (desvio de verbas para produtores) e as suspeitas contra os dois pré-candidatos do PDS — hoje PP, na ocasião o partido do governo — à Presidência, o ex-governador Paulo Maluf e o então ministro Mário Andreazza.

O valor do documento está no fato de mostrar a avaliação que os americanos faziam do último ano do regime militar. O diagnóstico da embaixada é que a roubalheira corroía a legitimidade do governo.

O texto contraria certo revisionismo disperso por alguns grupos hoje, de que a corrupção não existia durante o regime militar. Ao contrário: era um problema tão grande e presente no Brasil governado pelos militares quanto é hoje.

LÍDER LATINO – Em 1984, o Brasil interessava aos americanos por seu papel na América Latina. O presidente Ronald Reagan já se encontrara duas vezes com Figueiredo — de quem ganhara um cavalo — e tinha nele seu maior aliado para a guerra fria na região. Washington se preocupava com o principal parceiro no momento em que a região afundava na crise econômica.

Não estava mais no radar o fantasma de dez anos antes, do combate à ameaça de esquerda, como no documento revelado há duas semanas pelo professor Matias Spektor — no qual a CIA relatava uma reunião do então presidente Ernesto Geisel e três generais para falar sobre a repressão da ditadura a grupos opositores de esquerda, inclusive com assassinatos.

O texto de 1984 se preocupava com outro aspecto. Afirma que a corrupção corroera tanto a imagem dos militares entre a população, que era um fator decisivo para sua saída do poder.

CORRUPÇÃO MILITAR – “Entre muitos oficiais, dos mais baixos aos mais altos, há uma forte crença que os últimos 20 anos no poder corromperam os militares, especialmente o alto comando, e que agora é hora de deixar a política e suas intempéries e voltar a ser soldado”, diz.

Contudo, o alerta dos informantes é que os militares iriam embora, mas os efeitos negativos da roubalheira ficariam e poderiam desestabilizar a política nos anos seguintes. “O que está claro é que a corrupção, real ou imaginária, está erodindo a confiança dos brasileiros em seu governo”, diz o texto.

ANTES DA LAVA JATO – Em 1984, portanto 30 anos antes do início da Operação Lava-Jato e todos seus efeitos, já havia a percepção de que crescia a falta de confiança dos brasileiros nos políticos devido a casos de corrupção e a falta de punição dos acusados.

O Ministério da Defesa informou que os telegramas são conhecidos pelo governo desde 2015 e que não há nenhum novo posicionamento a fazer. No mês passado, ao comentar os documentos da CIA, o ministro interino, general Joaquim Silva e Luna, disse que o assunto é de responsabilidade de historiadores e, “se houver demanda”, da Justiça.

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