Fake News: a verdade é um acórdão dos ‘ilustres varões de Plutarco’

E quando é ninguém menos que Marine Le Pen quem levanta o dedo e pergunta: ‘quem decidirá o que é fake news?’

Fake News: a verdade é um acórdão dos ‘ilustres varões de Plutarco’
Este mês, Macron anunciou sua intenção de criminalizar as chamadas ‘fake news’ (Foto: change.org)
 Por Hugo Souza

Aconteceu de forma quase simultânea, como se fosse estreia transatlântica de uma dessas distopias que estão em alta no cinema e na TV, e que são, basicamente, sobre como rumamos mansamente em direção a um poder político totalitário, talvez com direito – talvez o único – a cães-robôs perseguindo a dissidência pelos pântanos da vida que restar; ou aconteceu mesmo foi um ataque coordenado à liberdade de expressão. Esse sim, mais concreto do que o são, supostamente, os eventuais escrachos a colunistas de alta linhagem. Pelo menos até agora, portanto, e pelo menos aqui nos suis do mundo, não houve sinal de protesto, repúdio, rechaço por parte das eminentes famílias de publishers que seguem à vontade para publicar, transmitir, repisar, urdir e batucar seja o que for que lhes convenha, nem sequer de reconhecidas entidades representativas da imprensa, também essas de já conhecida estirpe.

Primeiro, no último 4 de janeiro, o presidente da França, Emmanuel Macron, anunciou sua intenção de criminalizar as chamadas fake news, sob a justificativa de que elas estão “matando a democracia liberal”. Como substrato desse vaticínio está a notícia que se espalhou ao longo do ano passado (ela própria um tanto fake, conforme mostram estudos recentes), segundo a qual quem elegeu Donald Trump foram jovens balcânicos que desde a cidade de Veles, na Macedônia, publicavam delírios com jeitão de breaking news da CNN ou do USA Today, como “Michele Obama é homem”, para angariar cliques fáceis em seus sites e nos anúncios publicados em seus sites, entre outras formas de “monetização”, digamos, não tão elementares. Tudo durante a corrida à Casa Branca em 2016. Não se sabe ao certo quantos americanos acreditaram nesse e em outros bizarros “furos” e levaram essas “informações” em conta ao decidirem votar em Trump, mas sabe-se que 7% dos americanos acreditam que os produtos achocolatados são feitos com leite de vacas marrons.

A imprensa francesa informa que combater as fake news é uma “questão pessoal” para Macron, que foi protagonista de um sem número de notícias falsas circulando pelo Facebook durante sua campanha para o Palácio do Eliseu, em 2017. Ele venceu a eleição de forma não propriamente apertada, mas não faltou quem atribuísse o “risco” que o país correu de vitória de Marine Le Pen (teve segundo turno) mais a elas, às fake news, do que à quase equivalência das plataformas de governo do En Marche! e da Frente Nacional, salvo uma ou duas pautas identitárias perfeitamente acomodáveis no discurso e na prática do antigo funcionário do banco Rothschild, posto que “novidade política”, “candidato da Europa”, ponta de lança do “liberalismo progressista”.

As aventuras do TSE contra os ‘fatos sabidamente inverídicos’

Naquele dia 4, Macron anunciou que pretende outorgar ao Conselho Superior do Audiovisual (CSA), a agência reguladora da mídia no país, o poder adicional (e alguém desatento poderia supor que “bolivariano”) de “lutar contra qualquer tentativa de desestabilização por canais de televisão controlados ou influenciados por Estados estrangeiros”. Os algoritmos dos agregadores de notícias da internet devem ter ido realmente à loucura, pois, apenas dois dias antes, Nicolás Maduro acusava um punhado de agências internacionais de notícias de promoveram uma campanha mundial de desinformação sobre a Venezuela e a Revolução Bolivariana, classificada por ele como “exemplo de dignidade antiliberal”. Uma das agências acusadas por Maduro de tentativa de desestabilização do seu governo foi a France Presse.

Seis dias depois do anúncio da ofensiva do Eliseu que não é o Padilha contra a praga das fake news, e, portanto, na última quarta-feira, dia 10, foi a vez de o brasileiro Tribunal Superior Eleitoral anunciar punição a quem, durante o período eleitoral que se avizinha, incorrer na “divulgação de fatos sabidamente inverídicos”, publicando-os na internet ou compartilhando-os nas redes sociais. Lá, na França, como cá, na França Antártica, fica agora pairando ameaçadoramente no ar a dúvida sobre se “fatos sabidamente inverídicos” se referem apenas às manifestações mais grotescas da desinformação reinante (“Extra! Extra! A senhora Obama é transexual!”) ou se entrará também no escopo na CSA ou do TSE falar de coisas que “sabidamente”, a julgar pelo noticiário da imprensa de referência, já não existem mais, como o imperialismo francês em Burkina Faso ou o acirramento da luta de classes no Brasil ao passo que se acirram as contradições da sociedade brasileira – ou será que não se acirram?

Talvez o braço brasileiro dessa imprensa, a de referência, informe em breve que o plenário do TSE decidiu que afinal é fake falar da existência do “latifúndio” no Brasil dos dias que correm, porque o pop, ou melhor, o correto seria “agronegócio”, esse campo fértil para fazer brotar parlamentares. Ou quem sabe será batido o martelo de que usar a palavra “golpe” para se referir ao impeachment de Dilma Rousseff seja uma “verdade inventada”, e, portanto, vetada em horário eleitoral gratuito de rádio e TV, passando a controvérsia do terreno da luta política (ou da disputa de “narrativas”, como agora é moda dizer) para as instâncias superiores do Poder Judiciário. Nomeadamente o TSE, que arrisca assim se transformar, além do mais, em tapetão da verdade, agência de fact-cheking para o que não pode ser checado como se fosse a ficha corrida de um deputado que votou “Sim! Pátria Amada! Pátria Amada! Pela minha família! Pelo futuro do Brasil!”; ou como se fosse o passo a passo da ascensão meteórica de Marianna Fux na carreira da magistratura.

“Nós não vamos levar ofensa para casa. As coisas se definiram e é preciso ter muita firmeza”, disse Michel Temer quando capitaneou sua primeira reunião ministerial, instando seus subordinados a combaterem a acusação, dita mentirosa, de “golpistas”, antes de emendar: “e a firmeza muitas vezes vem pela elegância da conduta”. Sobre Luiz Fux, seu antigo colega de Superior Tribunal de Justiça Hamilton Carvalhido disse certa vez ser homem “digno, honesto, correto, fino, elegante, cavalheiro, cordial”, e que está entre os “ilustres varões de Plutarco”. Isso foi quando Fux deixou aquele tribunal para assumir uma vaga em outro, Supremo, em 2011. Carvalhido foi ministro do TSE de 2010 a 2012. O pai de Marianna será o seu próximo presidente, a partir de fevereiro, mas já avisou, sobre os futuros métodos de combate às fake news: “vou imprimir minha ideologia”.

‘Mentiram e imprimiram’

Emmanuel Macron, por certo, sabe bem como são feitas as bebidas lácteas com sabor de chocolate, mas o Brasil tem farto material didático para instruir o presidente da França sobre o que, de fato, está envenenando as democracias liberais: das apenas três promessas de campanha cumpridas por Marcelo Crivella no primeiro ano de seu mandato de prefeito do Rio até os sofríveis 3% de aprovação “conquistados” por Michel Temer (mas, conforme derreteu-se todo um jornalista brasileiro muito conhecido, não exatamente pela credibilidade, “quem conquistou dona Marcela não se deixa abater por nenhuma dificuldade”), passando por retumbantes 85% de rejeição a uma reforma da Previdência que, portanto, seria rejeitada nas urnas junto com o programa de governo do candidato que a propusesse para um mandato de presidente da República.

Não é propriamente dar cabo, porém, mas sim levar a cabo de uma vez por todas essa reforma da Previdência o que ora pauta o governo Michel Temer e o Congresso Nacional que lhe dá sustentação, empreitada que conta com o mais aberto apoio da imprensa brasileira mainstream, cujo mais expoente órgão, a Rede Globo, chegou a dizer em sua Retrospectiva 2017, sobre a reforma, que “é uma pena” que certas mudanças gerem tanto protesto. Se os impulsos originais da verdade e da política aparecem como distintos, se no espaço político “a mentira se torna um procedimento como que natural” — como já escrevia o filósofo Antonio Serra há quase 30 anos, em um precioso livrinho sobre ética jornalística – quem dirá sobre a qualidade da informação de uma imprensa que age abertamente como partido político não registrado no TSE? Por certo não o próprio TSE, que em 2018 estará entretido com os “fatos sabidamente inverídicos”, aqueles propriamente ditos, que podem, vejam só, acabar influenciando as eleições.

Quem também parece ter o que ensinar algo a Macron é, curiosamente, Marine Le Pen, que na França foi quem imediatamente reagiu à declaração de intenções do presidente de elaborar uma “legislação forte” para conter “a disseminação de desinformação online”, dizendo, a filha de Jean-Marie e tia de Marion: “quem decidirá o que é fake news?”. Àquelas diferenças não muito profundas entre Emmanuel Macron e Marine Le Pen, portanto, adicione-se mais essa, a de que o fascismo mais aberto considera “muito perturbadores” os planos do “liberalismo progressista” de censurar a internet. Pelo menos até uma eventual eleição da própria Marine, de sua sobrinha, já não de seu pai, mas ainda de qualquer outra nova “estrela” que vier a surgir dos quadros da Frente Nacional.

No dia 8 de maio de 1921, o Völkischer Beobachter, um jornal da extrema-direita alemã que acabara de ser comprado pelo Partido Nazista, publicava um artigo assinado apenas com as iniciais A. H. e intitulado “Mentiram e imprimiram”. O artigo era de duras críticas ao Münchener Post, o único jornal de Munique que denunciava veementemente a ascensão daquele partido e do futuro führer, acusando seus redatores de mancharem a imagem de “pessoas corretas”. A. H. costumava chamar a redação do Münchener Post de “cozinha venenosa”, título do livro da jornalista brasileira Silvia Bittencourt sobre esse que foi “um jornal contra Hitler”. Quando o Münchener Post alertou: “Nacional-socialistas! Julguem, vocês mesmos, tal caráter. Hitler é demagogo e só se apoia no talento para falar!”, um Adolf muito melindrado processou o jornal por injúria, exigindo punição para suas “mentiras, embustes e logros”. Um redator foi condenado por um ilustre varão de Plutarco a pagar ao novo “rei de Munique” 600 marcos alemães.

fonte:Opiniaoenotícia

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