ABDPRO #11 – TORQUATO CASTRO[1] E A TEORIA DA SITUAÇÃO JURÍDICA EM DIREITO PRIVADO NACIONAL[2]: ENTRELINHAS SEMIÓTICAS NA OBRA DO PROFESSOR PERNAMBUCANO DA FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE – – POR MARSEL BOTELHO

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Para o renomado autor, situação jurídica é a unidade básica do fenômeno jurídico que expressa todas as formas que o revelam e o configuram concretamente, nela inseridos os sujeitos ativo e passivo, objetivamente existentes, desempenhantes do papel prescrito pelo ordenamento, cuja posição que assumem é legitimada por título conferido pela norma que lhes permite o exercício da ação jurídica típica que o direito lhes reserva. Nesse mister, ensina o mestre, tanto o polo ativo titula um direito-poder, quanto o polo passivo um direito-dever.

A intersubjetividade, portanto, se trava com o corpo do objeto definido normativamente: relações de contato enquanto projeções das que lhes são atributivas, com reserva clara à ideia de sujeito ativo/passivo corresponder a uma vantagem/desvantagem. O sujeito passivo pode agir, inclusive contra a vontade do credor, para resguardar o vínculo. Eles têm a titularidade ativa dos poderes ações e exceções próprias. Devedor e credor são perfis intersubjetivos dos sujeitos frente ao mesmo objeto. Direitos e deveres são vistos como medidas de posições assumidas.

Citando Pontes de Miranda[3] sobre normas jurídicas pré-juridicizantes, juridicizantes e desjuridicizantes, passa a estudar as primeiras, cuja situação jurídica criada tem por fim conferir previamente “ao sujeito nela posicionado” uma qualidade (efeito jurídico), que é pressuposto de sua legitimação “em outras situações jurídicas” (a personalidade, a exemplo). Se isso é verdade, conclui que aquela situação jurídica “isola o sujeito enquanto o refere ao objeto”, este, que é exatamente aquela qualificação, “realiza-se e se satisfaz com a só presença do sujeito assim qualificado”.

O sujeito posicionado, então, não se relaciona com nenhum outro para chegar ao objeto, tampouco esse relacionamento teria qualquer relevo para a eficácia imposta pela norma qualificante. Não há, dessa forma, aí, intersubjetividade, menos ainda entre sujeito e objeto, mas referência, uma relação semiotizada. O que faz com que o objeto acesse o sujeito (posicionado na respectiva situação jurídica, que a chamou uniposicional) por mediação normativa.

Torquato traz à tona uma das maiores dificuldades para muitos juristas, a de vislumbrar uma relação jurídica sem intersubjetividade, ou sujeito universal, o que é possível com o método semiótico, presente nas entrelinhas de seu livro: tais situações jurídicas uniposicionais são qualificações que se impõem erga omnes, de modo algum seriam relações entre um e todos, uma coletividade, indeterminadamente, ilidindo qualquer mestria desse sujeito. Daí que a norma-situacional significa plenamente em função da concretude do seu objeto; inserindo-o, na situação jurídica, o sujeito também concreto, agora posicionado: a norma faz significar o fato, o sujeito e a coisa como “pontos situados no problema” perante outros.

A “existência pensada” da norma é que a diferencia da norma-situacional. Essas duas dimensões não se excluem, complementam-se. Sendo o sujeito “A”, o objeto “O” e a linha vertical, que os une, a “posição “, tem-se abaixo uma situação jurídica uniposicional:

Figura 1. Situação jurídica uniposicional: as concernentes à personalidade, capacidade, estados de família, direitos potestativos, reais; situações individualizantes do sujeito, não extensivas a outro. Tais que elas podem vir a constituir título suficiente (ou não) para posicionar o sujeito em situações diversas.

Ao apontar a norma a posição de mais de um sujeito, “A” (que detém poder-direito; a quem o objeto deve ser deferido) e “B” (detentor de poder-dever; poder-função; sujeito constringido a realizar a ação atributiva esperada; dever jurídico; obrigação) perante o mesmo objeto “O”, cria, por consequência, intersubjetividade entre eles, que os coordena para a consecução do objeto, posicionando-os opositivamente em relação a ele:

Figura 2. Na primeira imagem, a norma destaca a quem deve ser deferido o objeto; mas para que isso ocorra é preciso que B seja avocado, dele depende a atribuição normativa para aquela consecução, que faz resultar a relação intersubjetiva (linha horizontal, segunda imagem), consolidando a situação jurídica relacional (terceira imagem), de ocorrência mais ampla no mundo do direito. Observar que essa separação de imagem, de tessitura lógico-semiótica, é um momento da axiomatização no movimento lógico da significação. “A norma mete o sujeito jurídico dentro de uma relação intersubjetiva, mesmo quando o fato sócio-jurídico não seja de si mesmo relacional”: o herdeiro-posicionado com outro sujeito no lugar do de cujus; seja no fato-morte, ou na ocupação da res nullius. A primeira em separado (ou contida na terceira) e a última imagem são os elementos mínimos que comporiam todo e qualquer fenômeno jurídico: situação jurídica uniposicinal e situação jurídica relacional, respectivamente.

Se a norma é mediadora da relação semiótica sujeito-objeto, então é um interpretante, responsável por levar este àquele, que se posiciona no mundo jurídico; isso, de qualquer forma, ocorre com a transformação do objeto, que é semiótico, por juridicização, de modo que seu espaço de permanência é a situação jurídica, fazendo-a seu representamen(Peirce[4]) ou significante (Sausssure[5]), em um processo fenomênico semiótico (por conta da norma), lógico (por sua incidência) e jurídico (pela natureza do fenômeno que expressa).

Torquato percebeu a existência de uma função sígnica[6] entre “sujeito posicionado”, “norma” e “objeto”, estes podem ser reduzidos a três categorias semióticas: representamen(situação jurídica), norma jurídica (interpretante) e objeto (condutas e eventos); tanto sua norma-pensada (plano lógico), quanto sua norma-situacional (plano concreto) estabelecem uma relação diádica com a situação jurídica ou triádica com o seu objeto por uma função sígnica.

Pode-se representar uma função sígnica como a relação entre expressão (significante, representamen) e conteúdo (significado, interpretante), formalmente, ERC[7], que indica o sentido, uma semiótica, um signo. Uma metassemiótica, ilustrativamente, seria ER(ERC)[8]. Sem deslembrar que o texto pode ser tomado como expressão e o discurso como seu conteúdo; a estratos textuais seguem níveis de discursos et coetera.

Em breve parêntese, de outro mestre pernambucano, Lourival Vilanova[9], amigo e contemporâneo de Torquato na Faculdade de Direito do Recife, é-lhe corriqueiro reportar-se formalmente à relação jurídica usando a expressão S’RS’’, sendo S’ e S’’ sujeitos de direito numa R-relação. O mesmo acontece com a fórmula lógica da norma dos sancionistas tradicionais, D(A?B) ? (não-B?C), também expressa como D((F?R’ (S’, S’’) ? (não-F?R’’ (S’, S’’)) para a representação do direito material; e ((F?R’ (S’, S’’) ? (não-F?R’’ (S’, S’’, S’’’)) para o direito processual, sendo S’’’ o sujeito judicante e F (fato jurídico).

Sustentam os que a defendem que além de “D” (modalizador externo genérico, que tem como submodais O, obrigatório; P, permitido; V, proibido), deve-se ainda considerar outro modal, agora relacional interno, também genérico, “R”, para o qual há a mesma tríplice submodalidade, contido na endonorma e na perinorma, que vai configurar as relações jurídicas internalizadas, F?R’ (S’, S’’), dando caráter de validade à proposição descritiva e à prescritiva[10].

No campo de uma semiótica peirciana, o interpretante assegura a validade da relação triádica, não é necessariamente um intérprete; no da lógica apofântica, (A?B), como expressão dessa lógica, representa uma relação de verdade/falsidade, porém, se se colocar o modalizador “D”, passa a caracterizar uma expressão de validade deôntica: D (A?B). O fenômeno jurídico acontece nessa dupla dimensão lógico-semiótica. Na estrutura semiótica da norma[11], existe o nível da linguagem-objeto mantido por aquela relação triádica, que a valida; naquela estrutura, também há o da metalinguagem, regida por uma lógica alética. Quando essa relação de validade triádica do texto sofre disfunção (ou se rompe), a metalinguagem ocupa o espaço da linguagem-objeto, ocorrendo o erro judiciário; se este tem seus efeitos irremovíveis, a metalinguagem é validada como linguagem-objeto no sistema.

Torquato levanta forte crítica ao “idealismo filosófico que faz do direito pura relação intersubjetiva”, secundarizando ou desprezando o objeto. O direito, entende o professor, ao adequar homem a homem o faz “acerca de atos humanos exteriores e de coisas”, logo “uma situação existencial homem-mundo”, mais concreta/situacional do que relacional; nessa linha, o agir humano é conduzido pelo critério de finalidade, e não pelo de verdade, não havendo o justo ideal no direito, nem toma justo por idealização, tampouco firma que não haja uma verdade propositalmente jurídica: aquele, assim, não há idealizado, eis que problematizado/circunstanciado no homem, em seus atos e nas coisas que eles envolvem. Se a sociedade manifesta ineludivelmente sua força normativa, pessoas tornam-se sujeitos posicionados e seus interesses equacionados em objetos: “sujeito e objeto de construção normativa (…), relação atributiva (…), normo-dispositiva”.

Essas posições (e as decorrentes relações) são conferidas por títulos jurídicos que as legitimam, instituídos pelas normas: para alguém ser herdeiro há de, antes, ser parente; nascer com vida antecede a personalidade jurídica e assim sucessivamente (não sendo questão de mera prova, nem condição secundária eficacial, “mas do problema central da existência da situação jurídica invocada”), ou seja, uma situação jurídica sempre precede e investe o sujeito que se posiciona e se situa no mundo jurídico com o objeto, ou com este e ainda perante outros sujeitos.

Existe, pois, a pessoa de direito, coincidente com o sujeito posicionado, que ocorre na figura 1, gerando a situação jurídica uniposicional de força erga omnes, posição que lhe foi conferida no título dado pela norma situacional ao nascer com vida; o fato-causa (suporte fático) nascer com vida permite-lhe entrar em um estado de personalidade jurídica, fazendo-o um sujeito posicionado com o objeto personalidade jurídica; aqui não há intersubjetividade, nem sujeito universal noutra posição; a imagem 3 da figura 2 revela uma situação jurídica relacional, vês que há dois sujeitos posicionados perante o mesmo objeto por conta, por exemplo, de fato jurídico antecedente.

A posição, eventualmente, pode ser título no confronto de outra situação (pré-titularidade), mas a causa ou razão que fez “A” posicionar-se perante seu objeto, assim como aquela que posicionou “A” e “B” também perante o mesmo objeto é o título jurídico: a posição é objeto do título (causalidade eficiente), relação entre fato e efeito; entre suporte fático, ou fato jurídico e a própria situação jurídica como solução dada pela norma ao suporte ou propriamente ao fato jurídico, configurando a relação de pertinência de uma posição de sujeito, situacionalmente atribuída pela norma jurídica, a uma pessoa de direito; inexistindo, portanto, legitimação de fato: tantos papéis jurídicos, tantos títulos. A posição no título se a investiga.

Torquato ensina que sobre cada posição não recai uma multiplicidade ou pluralidade de sujeitos, ela é única para cada um, sendo uno ou plural o sujeito em cada polo da relação, todos são sujeitos posicionados; no direito real essa unipolaridade se mantém intacta; podem ocorrer posições idênticas, mas não recíprocas, que as chamou de unitárias (que não coincide com unidade), como é caso de condôminos:

Figura 3. Condomínio: unitariedade de posições idênticas relativas ao mesmo objeto.

O insigne professor repugna a ideia de um sujeito passivo universal, fertilizado numa cepa viva que conteria todas as pessoas da terra, e diz tratar-se de certa filosofia, não de ciência jurídica; rejeita, assim, a lição carneluttiana, esquematizada na figura abaixo, sendo “A” sujeito determinado e “N” sujeito universal:

Figura 4. Situação jurídica relacional com sujeito indeterminado N.

Identificando uma série de contradições, leciona que “não é possível fixar, ou identificar, no mero plano do mundo físico, a esse ‘sujeito’, entre os milhões que a curtíssimos prazos – ou sem prazo – nascem e morrem”, firmando que tal coisa também não seria possível no mundo jurídico, não se podendo saber “que espécie de papel, de colaboração, ou de interesse a satisfazer, esperaria a norma realizar ao conferir subjetividade a um tão móvel, mudo e indiferente sujeito”, “que, nem ao menos, é um ‘universal concreto’ do sistema hegeliano”. Sujeito que a norma não o quis, mas que “foi contrabandeado para a Teoria Geral do Direito”.

Torquato, brilhantemente, distancia-se dos “excessos objetivistas e subjetivistas do sociologismo que deformaram realmente a imagem do fenômeno jurídico através de um longo passado de nominalismo e de solipsismo”. Não é difícil vincular seu pensamento como contraponto ao que se tem vivenciado no constitucionalismo distópico, termo cunhado por Adriano Soares da Costa, jurista e intelectual de escol, em repúdio ao irracionalismo jurídico, oriundo da justiça das ruas e das mídias, que se tem adotado nos Tribunais, cujo fervor parece coincidir com as experiências hierárquicas do medievo, tão característico das sociedades em decadência, como assinala Johan Huizinga em seu O declínio da Idade Média: “Os homens do século XV não podiam compreender que os motivos determinantes da evolução política e social pudessem ser vistos de outro ângulo que não fossem os feitos de uma nobreza belicosa e cortesã“[12], essa aberração cromática, de fato, logicamente atualizada, parece persistir com outros candidatos a protagonistas.

A vastidão do pensamento do grande mestre pernambucano Torquato Castro, por si mesma, já é um deslumbramento e este texto não mais que um convite à leitura de suas obras.

Notas e Referências:

[1] O professor Torquato foi Catedrático de Direito Civil, Professor Emérito, Titular da Cadeira de Direito Privado do Curso de Mestrado da Faculdade de Direito do Recife e autor de importantes livros, um dos maiores expoentes da Teoria Geral do Direito.

[2] TORQUATO CASTROTeoria da situação jurídica em direito privado nacional. São Paulo: Saraiva, 1985.

[3] PONTES DE MIRANDATratado de Direito Privado. 3.ª ed., Tomo I. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970.

[4] PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. Trad. José Teixeira Coelho Neto, 3.ª ed., São Paulo: Perspectiva, 2000.

[5] SAUSSURE, Ferdinand. Curso de lingüística geral. Trad. Chelini, Antônio; Paes, José Paulo; Blikstein, Izidoro. São Paulo: Cultrix, 2006.

[6] ECO, Humberto. Tratado geral de semiótica. Trad. Danese, Antônio de Pádua e César Cardozo de Souza, Gilson. São Paulo: Perspectiva, 2000.

[7] HJELMSLEV, Louis. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. Trad. Coelho Netto, J. Teixeira. São Paulo: Perspectiva, 1975.

[8] BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. Trad. Maria Margarida Barahona. São Paulo: Cultrix, s/d.

[9] LOURIVAL VILANOVACausalidade e relação no direito. 2.ª ed., São Paulo: Saraiva, 1989.

[10] LOURIVAL VILANOVAEstruturas lógicas e o Sistema de Direito Positivo. 3.ª ed., São Paulo: Noeses, 2005.

[11] MARSEL BOTELHOA estrutura semiótica da norma jurídica. No prelo.

[12] HUIZINGA, Johan. O declínio da Idade Média. 2.ª ed., Trad. Augusto Abelaira, Lisboa: Ulisseia, 1996.

Imagem Ilustrativa do Post: Book Spines and Straight Lines // Foto de: Rob Milsom // Sem alterações

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*Marsel Botelho é Bacharel pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE), mestre pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Membro da Academia Brasileira de Direito Processual Civil (ABDPC), da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPRO), do Instituto Brasileiro de Direito Público (IBDPub), ex-Diretor do Sindicato dos Escritores Profissionais de Pernambuco.

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