‘Flores raras’ recria envolvimento amoroso de Elizabeth Bishop e Lota de Macedo Soares

Com estreia prevista para a segunda quinzena de maio, ‘Flores raras’, de Bruno Barreto, é um filme surpreendente, que conta uma história forte de maneira delicada. Embora bem conhecida e documentada, a passagem da poeta americana Elizabeth Bishop pelo Brasil, nos anos 50 e 60, e seu conturbado relacionamento amoroso com a arquiteta Lota de Macedo Soares (responsável pelo construção Parque do Flamengo, no Rio de Janeiro, entre outras obras),  não era simples de adaptar para o cinema. Mas, com roteiro competente, uma direção de arte primorosa e, principalmente, as interpretações iluminadas de Miranda Otto e Glória Pires, o resultado é exemplar. Como a arquitetura e a poesia, o cinema depende da alquimia, e ‘Flores raras’ encontra a fórmula certa.

Da mesma forma que W.H.Auden é quase sempre citado pelo poema ‘Funeral Blues’ (“Stop all the clocks, cut off the telephone… “etc), popularizado no filme ‘Quatro casamentos e um funeral’, o poema de Elizabeth Bishop que primeiro costuma vir à mente quando se fala seu nome é ‘Uma arte’, que transcrevo abaixo, seguido da já clássica tradução de Paulo Henriques Britto. Os dois poemas compartilham o tema da perda, mas se no caso de Auden esta é claramente associada à perda amorosa, nos versos de Bishop, de rara perfeição formal, o verbo perder ganha uma dimensão mais ampla, como fazendo parte da própria condição humana, com a perda de uma companheira apenas coroando um longo catálogo de coisas perdidas.

One art

The art of losing isn’t hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn’t hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother’s watch. And look! my last,
or next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn’t hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn’t a disaster.

Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan’t have lied. It’s evident
the art of losing’s not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.

Uma arte

A arte de perder não é nenhum mistério;
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subseqüente
da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

— Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.

Nesse sentido, tanto o longa-metragem de Bruno Barreto ‘Flores raras’ quanto o ensaio de Carmen Lúcia de Oliveira no qual ele se baseou, ‘Flores raras e banalíssimas’, não contam apenas uma história de amor com final triste: em ambos, existe uma história subterrânea, paralela ao enredo, por si só interessantíssimo, que entrelaça as vidas de Elizabeth Bishop e Lota de Macedo Soares. Nessa narrativa invisível, filme e livro expõem processos de transformação pessoal que caminham em mãos invertidas: para a frágil poeta americana, alcoólatra, depressiva e acostumada a uma existência mental e emocional fronteiriça, o envolvimento amoroso funciona como uma terapia, da qual ela sai para uma estável carreira como professora em Harvard; para a forte, decidida e bem-sucedida arquiteta brasileira, funciona como um abismo. Uma sai do relacionamento mais inteira do que entrou; a outra sai despedaçada. Pouco importa que sejam do mesmo sexo.

 

É claro que este é apenas um recorte, entre outros possíveis, da história. mas não é à toa que o poema citado aparece no começo e  no fim do filme de Bruno Barreto, nas conversas de Bishop com o poeta Robert Lowell, seu mentor: de certa forma, toda a história de Bishop no Brasil não terá sido mais que um meio para ela encontrar a solução para um poema inacabado: para ela, a poesia era mais interessante que a vida (e talvez seja mesmo).

O significado das vidas de Elizabeth Bishop e Lota de Macedo Soares não está no relacionamento intenso mas infeliz que tiveram. Cada qual em sua área, ambas foram responsáveis por importantes realizações. Em tempos de exaltação militante da homossexualidade, não deixa de ser um mérito que o filme ‘Flores raras’ evite a armadilha de exaltar o amor homoerótico como a experiência redentora que leva dá sentido á existência e leva à felicidade. Ao contrário: ele mostra que o amor, independente do gênero, pode ser uma força destrutiva e desestabilizadora. A arte de Bishop foi transformar essa força em poesia, em versos que sempre sublinham seu mal-estar existencial e seu permanente sentimento de ser uma estrangeira em qualquer parte. Foram pouco mais de 70 poemas publicados em vida, suficientes para consagrá-la como uma das principais poetas de língua inglesa do século 20.

Outra armadilha que o filme supera com êxito é o de encontrar o equilíbrio certo na contextualização da história: Carlos Lacerda, por exemplo, é retratado de forma simpática, mas ao mesmo tempo a narrativa deixa claro o seu envolvimento no golpe militar de 1964 – aliás apoiado também por Lota. ‘Flores raras’ não é uma história sobre heróis e vilões, mas sobre seres humanos cheios de fraquezas e ambiguidades. O filme é econômico na reconstituição de época, mas capta com eficiência a atmosfera urbana do Rio de Janeiro, nas poucas cenas na cidade (da qual Bihop não gostava), e, naturalmente, do paraíso particular da casa construída por Lota em Samambaia, em Petrópolis, onde a narrativa se desenvove em sua maior parte.

g1

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