EDITORIAL | Gazeta Pernambucana – 15 de Outubro: A Palavra como Chamado

Terceira Reflexão da Semana da Missão do Escritor: quando a escrita se torna destino e entrega

A palavra escrita é o fio tênue que sustenta a teia da humanidade. É por meio dela que atravessamos o tempo, tocamos outras consciências, reinventamos sonhos e resistimos ao esquecimento. Nesta Semana do Escritor, mais do que celebrar nomes consagrados, dedicamo?nos à essência: ao impulso que leva alguém a escolher o silêncio, cortar o ruído, enveredar pela linguagem.

Em tempos de efemeridade, a escrita é resistência. Enquanto eles apressam o mundo, o escritor recusa a pressa. Enquanto eles diluem o sentido em slogans, ele devolve complexidade. Enquanto eles inspiram consensos fáceis, ele pergunta. É no espaço entre os signos que mora a inquietude: quem escreve vai além do repertório; transgride, remodela, rasga e refaz.

Mas essa vocação exige cuidados — sustento institucional, liberdade de expressão, leitura cultivada, editoração séria e remuneração justa. Não basta reverenciar o escritor como mito: é preciso integrá?lo à vida cultural, educacional e econômica da sociedade. Precisamos leitoras que revisitem velhos clássicos e descubram novos horizontes; escolas que fomentem narrativas plurais; governos que reconheçam a literatura como política pública.

Durante os próximos dias, esta casa abrirá espaço para diálogos com vozes múltiplas: o escritor que escreve na periferia, a poeta que traduz sua ancestralidade, o cronista que registra o inusitado cotidiano, o autor emergente que busca visibilidade. Será uma semana de encontro, entre letras, entre desafios, entre futuro.

Que este tempo não passe como comemoração automática. Que ele se grave como um pacto: conosco, com o leitor, com a vida. Que o escritor sinta, em cada aceno, que não está sozinho. E que, por meio da escrita, possamos manter acesa a chama da reflexão, da dignidade e da memória.

Porque, no fim, escrever é um ato de fé no humano, e essa fé sempre será necessária.

UM DIA SEM TI, E O MUNDO SE CURVA PARA O NADA. Por Flávio Chaves

  Por Flávio Chaves – Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras. Foi Delegado Federal/Minc  – Há dias que não são dias, são apenas intervalos vazios entre o que fomos e o que tememos ser. E há um tipo de ausência que não se anuncia com estardalhaço, mas chega de mansinho, como o vento frio que entra pela fresta da janela e vai roubando a alma do corpo aos poucos. Assim é o dia em que não se sabe de ti. Um dia que não traz teu nome na boca do mundo, que não deixa vestígio teu no céu da manhã, que não permite à memória o consolo de um sinal. Um dia desses é como morrer à míngua, sem saber, sem entender, sem poder fazer nada além de esperar.

Não saber de ti é vagar por um mundo sem tradução. É habitar um idioma de sombras, onde cada objeto lembra tua ausência, onde o espelho se recusa a refletir um rosto inteiro, e o silêncio lateja como uma ferida aberta dentro do peito. O mundo, sem tua notícia, sem tua voz ecoando ainda que em uma sílaba, torna-se um território inóspito, um deserto onde os pássaros se calam e os relógios giram sem sentido. O tempo, esse impostor que sempre enganou, se arrasta como um animal ferido, cuspindo horas sem brilho, sem destino, sem calor.

Tu, que foste farol, agora és sombra. Mas não uma sombra qualquer. És aquela que permanece mesmo quando todas as luzes se apagam. Aquela que não abandona nem quando se tenta esquecer, nem quando se finge não sentir, nem quando se sorri por educação diante dos outros. Estás aqui, na margem de tudo que não se sabe mais nomear, como um fantasma terno que observa enquanto se vive esse dia mudo, esse espaço sem ti.

Como pode um simples silêncio teu abalar tanto a estrutura do mundo? Como pode um dia sem tua palavra tornar-se uma eternidade de aflição? Dói a espera, sim, mas dói ainda mais o vazio de sentido que tua ausência provoca. Não saber se estás bem, se respiras com leveza, se pensas em mim enquanto o dia corre… isso é uma forma de martírio que os dicionários não explicam. É um luto sem corpo, uma saudade sem endereço, uma oração feita ao vazio.

Tudo grita tua falta. O café que esfria na xícara porque tua ausência o amarga. A cadeira ao lado da mesa que não se move, que permanece imóvel, como se soubesse que tu não virás. A cortina que se agita com o vento, e que engana por um segundo, como se fosse tua mão abrindo a janela. Até os objetos da casa aprenderam a se calar. Como tudo.

E, no entanto, a esperança é uma teimosa. Um pequeno lume que insiste em não apagar. A cada notificação no telefone, a cada passo vindo da rua, a cada sombra que se move no fim da tarde, o coração acelera, perguntando-se se serás tu. Como se a vida toda estivesse condensada na possibilidade do teu retorno, na promessa da tua voz rompendo o exílio que teu silêncio construiu entre nós.

Há quem diga que o amor é presença. Mas o amor verdadeiro é resistência. É continuar sentindo mesmo quando tudo empurra para o esquecimento. É continuar vivendo mesmo quando tudo dentro pede rendição. É continuar morando em ti, mesmo que tua casa esteja fechada.

E mesmo que amanhã o mundo volte a curvar-se para o nada, ainda assim haverá olhos voltados para o horizonte, esperando tua luz.

EDITORIAL | Gazeta Pernambucana – 14 de Outubro: A Solidão que Gera a Palavra

Segunda Reflexão da Semana da Missão do Escritor: a entrega silenciosa e criadora de quem escreve

  Entre o ruído do mundo e o silêncio da palavra, existe um lugar raro, quase secreto, onde poucos ousam permanecer. Esse lugar não se encontra nos mapas, tampouco nas agendas ruidosas do cotidiano; ele habita a interioridade de um ser atravessado por inquietação: o escritor. Um ser convocado por uma força que não se explica, mas que pulsa como destino inevitável. O escritor não escreve para preencher o tempo ocioso, nem para alimentar a voracidade das redes. Ele escreve porque há em sua alma uma urgência que transborda o silêncio e reclama linguagem. Uma necessidade visceral de dar voz ao que muitos sentem, mas não sabem nomear. E essa revelação, essa alquimia entre o sentir e o dizer, só se realiza atravessando uma solidão que não é ocasional, mas ontológica. Uma solidão que não exclui, mas funda. A solidão sagrada do escritor.

Essa solidão não é exílio, não é recusa do mundo. É, antes, uma forma profunda de estar no mundo. É um recolhimento ativo, uma escuta ampliada, um mergulho nos substratos do real. É nesse átrio do silêncio que o escritor ouve os murmúrios da memória coletiva e pessoal, as pulsações de ideias ainda sem forma, os resquícios de sentidos que flutuam no invisível. Ele se retira para poder reencontrar. Cala-se para poder nomear. Esvazia-se de si para hospedar o que ainda não é. Como um sacerdote da palavra, o escritor se consagra a esse rito solitário de escuta e reinvenção.

Cada frase que emerge do papel carrega um percurso invisível. É filha de uma luta silenciosa entre o pensamento e a expressão, entre o vivido e o dizível. Escrever é um ofício de paciência e risco. É um gesto de fé — fé na potência da linguagem, fé na inteligência sensível do leitor, fé na possibilidade de que, através das palavras, o humano ainda possa se encontrar e se transformar. Por isso, não existe escrita verdadeira sem esse mergulho radical na própria vulnerabilidade. Todo escritor autêentico é, antes de tudo, um peregrino do silêncio e um escultor da escuta.

A solidão do escritor é seu único território de liberdade. Ali ele pode despir-se das conveniências, desmontar os clichês, resistir à superficialidade. É nesse espaço que a alma se expande e se desnuda, onde as verdades ocultas se revelam sem temor, onde a dor é transfigurada em palavra digna. O escritor escreve para que o mundo não se perca em ruídos. Para que a palavra, mesmo que frágil, siga sendo um farol no caos. Ele escreve porque acredita que certas palavras podem mudar destinos, restaurar sentidos, abrir fendas no real.

Neste segundo momento da Semana da Missão do Escritor, rendemos nossa homenagem não apenas àquele que publica livros ou textos, mas àquele que se oferece como canal do indizível. Celebramos o escritor como mediador entre o caos e a beleza, entre a dor e a dignidade, entre o tempo e a eternidade. Aquele que ousa escrever quando tudo convida ao silenciamento, aquele que não tem medo de escutar a própria sombra, aquele que constrói pontes com palavras entre ilhas de silêncio.

Sim, é dessa solidão sagrada que nascem as obras que desafiam os calendários. É desse recolhimento que brota a palavra que permanece. E é por isso que hoje, mais do que nunca, celebramos o escritor como aquele que, mesmo sozinho, não escreve para si, mas para todos nós.