Pedro Corrêa do Lago inaugura ‘The magic of handwriting’ na Morgan Library & Museum
NOVA YORK — No tempo em que ainda se escrevia à mão, ou no máximo em uma máquina de escrever, o menino Pedro Corrêa do Lago, então com 11 anos, resolveu começar uma coleção de autógrafos.
Mas o editor e colecionador carioca, hoje com 60 anos e inaugurando uma exposição de seus manuscritos na Morgan Library & Museum de Nova York, não é dessas figuras vulgares que andam por aí com um bloco de anotações aporrinhando celebridades. Ele, inclusive, faz questão de esclarecer, com toda elegância, do que trata seu hobby.
— A palavra autógrafo desorienta. Qualquer pessoa na rua, quando indagada sobre o que é um autógrafo, vai dizer que se trata de uma assinatura. E não é. Qualquer coisa escrita pela sua mão é um autógrafo, mesmo que seja uma folha de caderno. Qualquer anotação é tanto teu autógrafo quanto uma assinatura. Talvez a melhor forma de definir seja que toda assinatura é um autógrafo, mas a recíproca não é verdadeira — disse ele ontem, na inauguração para convidados de sua exposição “The magic of handwriting”, a primeira de um brasileiro na Morgan (a mostra abre ao público de hoje a 16 de setembro).
Corrêa do Lago também esclarece outro aspecto de seu trabalho que causa confusão entre os leigos. Para ele, a tradução mais precisa do nome da mostra que reúne 142 itens de uma coleção de cerca de cem mil peças acumuladas em quase cinco décadas não é “A magia da caligrafia”, mas “A magia do manuscrito”.
Ao ser perguntado sobre o que a caligrafia revela sobre as pessoas, o colecionador desmistifica o motor de seu interesse, dizendo não ser um fã da grafologia, que considera uma “pseudociência”.
— Não acredito que a barra do T virada para esquerda ou para a direita revele alguma coisa da sua personalidade — diz Corrêa do Lago.
Para ele, o que emociona é a beleza da escrita, sua energia e seu conteúdo.
A coleção, dividida em categorias — História, Artes, Entretenimento, Ciências, Literatura — traz documentos como uma carta do pintor Paul Gauguin contando que mudou de planos sobre passar um ano no Sul da França pintando com um amigo seu que enlouquecera. O amigo era Vincent Van Gogh, que também aparece na mostra com uma descrição de seu quarto em Arles, feita dois meses antes de sua morte.
A peça mais antiga é um pergaminho de 1153, feito de pele de carneiro, assinado pelo papa Anastácio IV e mais 15 cardeais, três dos quais se tornariam papas posteriormente e um que foi canonizado mais tarde. O documento é importante porque, naquela época, era muito raro que o alto clero da igreja assinasse documentos com a própria letra. Quem fazia isso eram os escribas.
Hoje vive-se uma época em que pouca gente escreve cartas de próprio punho. Corrêa do Lago diz que ele mesmo não tem escrito muitas nos últimos anos e que não gostaria que a exposição fosse usada para discursos saudosistas sobre como as novas gerações abandonaram a arte do manuscrito.
— As pessoas deixaram de escrever à mão. É uma evolução normal do mundo, não me incomoda o mínimo. Sempre digo que as cartas dos meus contemporâneos vão ser muito mais raras que as cartas antigas. Por isso que uma carta do Steve Jobs é muito mais cara do que uma carta do (presidente americano Abraham) Lincoln, porque o Jobs é de uma geração que não escrevia.
Bilhete de 1949 escrito por Matisse para o editor Albert Skira, assinado pelo artista com as iniciais – Reprodução
A geração que não escreve também é uma geração que ajudou a matar, de certa forma, o autógrafo, diz ele.
— Pelo menos no que diz respeito a substitui-lo como troféu, a selfie matou o autógrafo. Afinal, por que se pedia autógrafos antigamente? Era para provar que você tinha estado com aquela pessoa. Era maneira tangível de perpetuar aquele encontro. Hoje evidentemente a selfie é muito mais eficiente.
Percorrer os salões da Morgan Library com o colecionador é como revisitar sua adolescência, quando esteve no local pela primeira vez.
— Este foi o primeiro livro impresso no Ocidente. Quando vim aqui, nunca tinha visto nada do gênero — diz com brilho nos olhos ao mostrar a Bíblia de Gutenberg, que faz parte do acervo da biblioteca.
A exposição também foi organizada de forma a refrescar a memória dos americanos sobre sua própria história, além de marcar a presença de grandes nomes da cultura brasileira, como Tom Jobim, que aparece com o manuscrito da canção “Chega de saudade”, de 1958, além de Oscar Niemeyer, Santos Dumont, Heitor Villa-Lobos e Machado de Assis.
Há ainda um contrato de venda de um pedaço da cidade de Nova York conhecido hoje como Wall Street, de 1670, além de documentos de momentos históricos que envergonham os Estados Unidos, como a declaração que o cineasta britânico Alfred Hitchcock assinou afirmando não participar de nenhuma atividade comunista, para que pudesse filmar no país na época do macarthismo.
Corrêa do Lago, que volta e meia afirma não ter casa nem carro próprios e se orgulha de ter gastado todo o seu dinheiro nesta paixão, não sabe avaliar quanto vale a coleção. Embora não conte quanto investiu, tem uma vaga ideia de que tenha sido uma fortuna.
— Não sei quanto vale, mas tem peças que custaram de dois zeros a cinco zeros, como dizem os americanos. Outro dia fiz uma conta por cima e me espantei, não por ter gastado, mas por ter ganhado aquilo tudo.
Oglobo