Por José Paulo Cavalcanti Filho – Escritor, poeta, membro da Academia Pernambucana de Letras e um dos maiores conhecedores da obra de Fernando Pessoa. Integrou a Comissão da Verdade
Antiga farsa de Gil Vicente (Auto da Lusitânia) relata diferenças entre “um rico conhecido como Todo Mundo” e um “homem vestido como pobre, conhecido como Ninguém”. Primeiro, se apresenta o rico: “Eu hei nome Todo Mundo/ E meu tempo todo inteiro/ Sempre he buscar dinheiro/ E sempre nisto me fundo”. Em seguida, o homem vestido como pobre: “E eu hei nome Ninguém/ E busco a consciência/ Esta he boa esperança/ Dinato, escreve isto bem”. Encerrando-se, as apresentações dos personagens, “Que escreverei companheiro?/ Que Ninguém busca consciência/ E Todo Mundo dinheiro.”
A partir de nossa renda per capita, de um lado estão aqueles a quem sorriu a sorte e o patrimônio; do outro, condenados pela ausência de oportunidade e por um modelo econômico excludente. Complicado é que a convivência instável entre brasileiros desiguais começa a ser ameaçada pelos baixos teores de nossa democracia econômica. A atitude do indeterminado cidadão comum em relação à impunidade, por exemplo, mostra que ela é mais forte à medida em que nos aproximamos da base da pirâmide social. Motoristas de táxi, barbeiros ou feirantes sonegam suas receitas e não acham nada demais; mas querem que os grandes empresários vão para a cadeia, se deixarem de pagar imposto de renda. Revelando que destinatário da ira não é a sonegação, mas o sonegador. Não o que se faz, sobretudo quem faz.
Em relação aos sem terra, outro exemplo, temos o mesmo cenário. Direitos adquiridos, ardorosamente defendidos pelas organizações populares, valem para tudo, menos em relação às terras que invadem. Decisões da justiça são consideradas democráticas apenas quando a favor. Tudo revelando indícios claros de fragmentação que podem ser reproduzidos em muitas outras situações. Mostrando que, no fundo, talvez já estejamos vivendo como que um início de acerto de contas social.
Seja como for, amigo leitor, mantenho minha fé de que ainda veremos um Brasil em que, aproveitando os personagens de Gil Vicente, não falte trabalho a Ninguém, em que Todo Mundo trabalhe. E nada impediria que algum poeta de fim de semana se aventurasse, agora, na continuação dessa trama.
Em versos que, por exemplo, dissessem: Pois Ninguém quer fazer força/ Todo Mundo aposentar/ Um tem renda garantida/ Outro o pão para ganhar/ Todo Mundo é boa vida/ Casa, cantiga e comida/ E Ninguém quer trabalhar.