‘Encontro você no oitavo round’, do capixaba Caê Guimarães, narra as glórias e as tragédias de um pugilista em fim de carreira
O monólogo dá voz a Cris, Cristiano Machado Amoroso — que ressalta que não há apelidos aí, mas apenas sobrenomes, e que detesta trocadilhos. Quando jovem, Cris desistiu do jornalismo, engavetou sua poesia e abraçou o boxe. Ganhou fama nos ringues do país, mas começou a decair quando foi nocauteado numa disputa importante. Desde então, restaram-lhe somente apresentações em ginásios obscuros e um zumbido quase permanente na cabeça.
Chegando aos 40 anos, Cris está às vésperas de sua última luta. Tudo está arranjado: em troca de uma grana considerável, deverá jogar a toalha no quarto round. Fez isso em inúmeras ocasiões, sabendo que o business do entretenimento nem sempre respeita o espírito esportivo. Desta vez, no entanto, ele planeja secretamente não respeitar o trato, estendendo o embate além do combinado. Sabe que, fazendo isso, pode arranjar problemas sérios, mas não se mostra preocupado.
O que realmente preocupa o atleta, nesse momento tão atribulado, é abrir sua vida para a jornalista Ester, que quer escrever uma reportagem sobre o talento literário do ex-escritor. Mas Cris tem seus segredos e teme que a repórter os descubra.
Ester é uma coadjuvante de peso. É a ela que o protagonista se dirige no monólogo, é ela quem o provoca a mergulhar na sua história. Para isso, Cris tem que duelar consigo mesmo, e isso nunca é moleza. Pouco a pouco, o relacionamento entre os dois destampa casos surpreendentes, que fogem às histórias-clichês dos grandes lutadores, e consegue a proeza de ensaiar filosofia e poesia entre jabs e esquivas, tudo no seu tempo certo, sem desperdício de energia.
Nesse campo tão vasto em conflitos, e por isso mesmo tão cheio de literatura bruta, a trama mostra que as contusões visíveis de quem se mete na luta (ou na vida) são as menos traumáticas: somem com remédios, talas, pontos cirúrgicos. Já as fraturas existenciais, que o grande público ignora, não desaparecem de vez e sempre voltam para azucrinar o lutador — como se fossem um zumbido intermitente.
Apaixonado por boxe desde criança, Caê Guimarães, de 50 anos, criou uma narrativa que acompanha a mobilidade de um pugilista no ringue. Vive “fingindo estar onde não está”, sempre se livrando de golpes repentinos. Ora esbanjando leveza, ora sentando a porrada no oponente, as reflexões de Cris e de seus interlocutores variam entre ideias profundas e questões cotidianas. Suas palavras são bem colocadas, encadeadas em ritmos vários, conforme o momento, ou o movimento, que a ação exige.
Por baixo da leitura superficial, “Encontro você no oitavo round” pode esconder uma história de derrotas, superações, segredos, vinganças, isso ou aquilo. E pode ser também uma grande representação da vida, suas dores e delícias, com a sábia decisão — estratégica — de fugir do discurso do ressentimento e das lamúrias. Abrindo mão de caminhos menos atribulados, Cris assume a responsabilidade pelo seu destino e assimila bem os golpes das suas escolhas. Assim é o boxe, assim é a literatura.
Por último, é inevitável terminar este comentário citando Cortázar. Certa vez, o mestre argentino disse que um romancista deve conquistar o leitor por pontos, batendo aos poucos, enquanto um contista deve ganhá-lo por nocaute. Caê Guimarães equilibrou-se com habilidade entre esses dois gêneros de luta literária. Somou pontos a cada capítulo e, não satisfeito, ainda decidiu nocautear o leitor na última página. Nem precisava.
*Nelson Vasconcelos é jornalista
“Encontro você oitavo round”
Autor: Caê Guimarães. Editora: Record. Páginas: 144. Preço: R$ 34,90. Cotação: Ótimo