Por que a atriz é um exemplo para o Brasil de hoje
Ela fez rir e chorar como a Charlô de “Guerra dos sexos”, a Bia Falcão de “Belíssima”, a Selminha de “O beijo no asfalto”, a Petra de “As lágrimas amargas de Petra von Kant”, a Zulmira de “A falecida”. Nunca uma atriz mostrou tanta dor enquanto catava feijões como a Romana de “Eles não usam black-tie”. Nunca ninguém riu e chorou que nem Dora no fim de “Central do Brasil”. A jovem de 16 anos que estreou no teatro como Arlette Pinheiro, em “Natacha”, se lançou furiosamente em “The flash and crash days” aos 64. E, um ano depois, foi enterrada até o pescoço como a Winnie de “Dias felizes”, contracenando com o amor de sua vida, Fernando Torres, no último papel dele. Aos 84, em “Babilônia”, beijou Nathalia Timberg. E segue em cena. No fim do mês, vai roubar a cena no filme “A vida invisível”.
A arte de não desistir da arte
Em 1964, ela e colegas do Teatro dos Sete, endividados, tiveram que desfazer a companhia. As dívidas foram pagas dois anos depois, com o sucesso da peça “A mulher de todos nós”. Em 1990, o confisco do governo Collor a impediu de montar “Suburbano coração”. Para segurar as pontas (e contas), levou o monólogo “Dona doida” a todo interior paulista. Recentemente, rodou o país lendo Nelson Rodrigues, para apresentá-lo às novas gerações sem grande custo.
Numa poltrona, perto de você
Quem mora no Rio e frequenta teatro sabe: encontrar Fernanda é questão de tempo. Reverenciada por sua trajetória e importância, ela é uma espectadora frequente e cobiçada pelos colegas, sedentos por seus comentários. Mês passado mesmo, após ver o monólogo “Sísifo”, estrelado por Gregorio Duvivier, discursou emocionada: “Tem algo mais vivo? ( do que o teatro ). Em cada catacumba a nossa arte, a nossa inteligência resiste.”
‘The old lady from Ipanema’
Vencedora de diversos prêmios no teatro (só de Molière foram cinco), cinema (incluindo um Urso de Prata, em Berlim) e TV (tem um Emmy Internacional, pela minissérie “Doce de mãe” ), Fernanda Montenegro foi a única atriz brasileira indicada ao Oscar. Concorreu em 1999, com “Central do Brasil”, e deu lição de fair play . No talk-show de David Letterman, apresentou-se brincando: “I’m the ‘old lady from Ipanema’” (Eu sou a velha senhora de Ipanema). Perdeu para Gwyneth Paltrow, e ninguém se conformou. Quando “Central…” ganhou o Globo de Ouro de filme estrangeiro (ela também foi indicada como atriz), discursou emocionada: “Meu inglês não é muito bom, mas minha alma é muito melhor. Estou muito feliz que o filme lhes tenha tocado o coração.”
A bruxa de todas as batalhas
Às vésperas de completar 90 anos, ela posou como uma bruxa amarrada à frente de livros prestes a serem queimados. Era resposta a um episódio de censura ocorrido na Bienal do Livro do Rio. A imagem viralizou na internet e despertou a ira do diretor de Artes Cênicas da Funarte, Roberto Alvim, que ofendeu a atriz, chamando-a de “sórdida” e “mentirosa” . Acarinhada por uma torrente de apoio, ela manteve a altivez de quem nunca se furtou a se posicionar. Fernanda já defendeu a liberação de drogas, manifestou-se pela proibição de venda de armas, criticou a situação dos teatros no Rio e pediu mais respeito com a classe artística, duramente atacada nos últimos anos. “Não somos corruptos. Somos dignos”, disse, no “Domingão do Faustão” , ecoando o sentimento de todos os seus colegas.
Presentes de Nelson, Clarice e Millôr
Fernanda passou oito meses telefonando para Nelson Rodrigues e exigindo-lhe uma peça. Ganhou “O beijo no asfalto”, que estreou em 1961 —“Toda nudez será castigada” (1965) e “A serpente” (1978) também eram para ela, que só conseguiu fazer a primeira. O dramaturgo carioca, que morreu em 1980, teve grande influência na carreira da atriz, que acabou se tornando uma grande amiga. A atriz também recebeu versos de Clarice Lispector (“Esta mulher que é minha mãe/Esta mulher que é minha avó/Esta mulher que é minha filha / Está é a mulher que sou./Sou todas elas, inda mais algumas” e um carinho de Millôr Fernandes: “Sua vida é um palco iluminado. À direita, as gambiarras do perfeccionismo. À esquerda, os praticáveis do impossível”.
Álbum de família
É uma família dedicada à arte. Fernanda Montenegro e Fernando Torres são pais da atriz e escritora Fernanda Torres e do diretor Claudio Torres. As duas Fernandas estiveram juntas no palco uma só vez, em “The flash and crash days” (1993), de Gerald Thomas —mãe e filha se enfrentavam agressivamente. Tudo cena. Fernandinha diz que seguiu a profissão e o espírito de Fernanda — “A glória e seu cortejo de horrores”, frase da mãe, virou título de livro da filha. Desde julho, as duas podem ser vistas numa videoinstalação na galeria Victoria Miro, em Londres. Criada pelo britânico Isaac Julien, “A marvellous entanglement” mostra ambas na pele de Lina Bo Bardi, que projetou o Masp.
Crença em catolicismo, Jung e pregos na mão
Claudio Torres, que dirigiu Fernanda em “Redentor” (2004), confidenciou que a mãe “é católica mesmo, reza muito”, e criou os dois filhos na religião. O livro que Fernanda relê com frequência é “Memórias, sonhos, reflexões”, de Carl Gustav Jung, expoente da psicanálise. Ela, porém, nunca fez terapia. A atriz não é muito de superstições. Não tem manias de organização nem restrições com cores de roupa. Mas não nega um hábito que mantém entre estúdios de televisão e teatros: quando encontra qualquer prego torto pelo caminho, caído de algum cenário, pega o objeto e segura até o momento em que entra em cena.
‘Grande dama do teatro’ é o cacete
Chamada de “grande dama do teatro brasileiro”, Fernanda já disse inúmeras vezes que detesta a alcunha. “Acho uma merda”, decretou à revista “TPM”. “Mas não consigo me livrar disso. É como se me transformassem em uma personagem.” A atriz mostrou ter disposição de sobra para desconstruir sua imagem em 2009, ao participar do programa de humor “Casseta & Planeta Urgente” caracterizada de Indiana Jones no quadro “Fernanda Jones — Em Busca do Oscar Perdido”. De qualquer forma, já há três salas de teatro com seu nome: no Rio, no bairro do Leblon, em Curitiba e em Palmas. Fernanda já se apresentou nos três palcos.
Fonte: O Globo
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