Em minha infância, quis guardar os crepúsculos para que a noite não chegasse. Por Flávio Chaves

  Por Flávio Chaves – Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras. Foi Delegado Federal/Minc  –  Nunca gostei da noite. Desde menino, ela me parecia um perigo com cheiro de ausência. Eu a temia como se fosse um bicho agachado no escuro, pronto para me lembrar que meu pai não voltaria mais. Ele partiu para a eternidade quando eu ainda ia completar três anos, e desde então, tudo o que escurecia me feria. Cada fim de tarde me sangrava de silêncio. Era como se, ao descer da luz, o mundo também descesse um pouco dentro de mim.

Por isso eu quis — ainda menino — guardar os crepúsculos. Escondê-los. Recolher a luz do dia com as mãos e protegê-la num lugar secreto, longe da noite. Tive, em minha pequena alma órfã, essa ideia impossível e poética: se eu salvasse o crepúsculo, a noite não chegaria. E talvez meu pai voltasse. Anos depois, dei a um livro de poesia o nome de O Guardador de Crepúsculos. Esse nome morava em mim desde antes de eu saber o que era metáfora. Desde antes de eu saber o que era perda.

A casa era feita de silêncios e esperanças costuradas a mão. Nós éramos pequenos — eu e meus três irmãos —, e tudo nos parecia grande demais. A ausência do pai não era apenas um vazio: era uma presença espessa, que ocupava os cantos da casa, as frestas das decisões, a falta de um abraço forte na hora do medo. Nossa mãe, mulher de coragem miúda e alma imensa, foi sol e teto, pão e chão. Mas havia coisas que nem a mulher mais heroica pode substituir. A figura paterna — aquela viga de sombra e de coragem — nos fazia falta, sobretudo à noite, quando o escuro chegava mais dentro do peito do que fora da janela.

A única claridade que me era possível era o sonho. Sonhar foi o jeito que encontrei de existir por inteiro. Eu sonhava como quem foge e como quem resiste. Sonhava para alcançar. Sonhava porque o real me escapava. E, acima de tudo, sonhava o impossível — porque o possível já me faltava.

Lembro de um dia em Carpina, minha cidade. Saí a caminhar sozinho por uma estrada de barro, depois da Rádio Planalto. Fui além. Muito além. A paisagem era toda verde, com uma fazenda da família Carvalheira de um lado e, do outro, um lago serpenteando entre os roçados. Era uma manhã qualquer. E, de repente, vi. Vi um pássaro enorme, com o papo amarelo e as asas de um negro suave. Ele me olhou — ou eu o olhei — como quem reconhece um sinal. E então ele voou. E no voo dele, eu entendi tudo. Era o meu primeiro alumbramento. Uma beleza tamanha que doía de tão pura. Naquele instante, eu não era apenas um menino: eu era testemunha da liberdade.

Mais tarde descobri que era um bem-te-vi. Mas, naquele momento, era um emissário de algo que eu ainda não sabia nomear.

Logo depois, olhei para o outro lado da estrada e vi, no horizonte, uma cidade desconhecida. Falei comigo mesmo, quase sussurrando: “Um dia, eu ainda vou ali.” Era Nazaré da Mata. E o tempo se encarregaria de revelar que aquela cidade tinha nome de fé. Nazaré — o mesmo nome do lugar onde nasceu Jesus. Entendi, mais tarde, que minha caminhada era isso — fé e promessa. E que aquele lugar, aparentemente inalcançável, simbolizava tudo que eu ainda poderia alcançar. Eu iria, sim. Não apenas a Nazaré. Eu iria para o mundo.

E fui.

Estudei com afinco, mesmo quando o lápis era curto e o futuro parecia um papel em branco sem coragem de ser escrito. Passei pelas salas da Escola Baltazar e da Escola Reunidas Eliane Carneiro Leão. E um dia, já adulto, me vi em Paris. Não sozinho — mas representando outros. Fui convidado a participar do lançamento de uma antologia com diversos escritores brasileiros, na Casa da América Latina. E ali, naquele lugar histórico, representei o Brasil com uma palestra, uma palavra, uma presença. Fui em nome dos que escrevem do chão, da luta, da lama transformada em letra. Caminhei pelas ruas da França como quem ainda sente o barro de Carpina nos sapatos da alma. Falei em auditórios lembrando da minha mãe costurando esperança nas noites escuras. E entendi que o menino que queria guardar os crepúsculos tinha conseguido: ele havia protegido uma luz dentro de si.

Cresci órfão de pai. Mas aprendi que quem cresce com ausência pode aprender a ser presença. Que o sonho pode ser ponte. Que o menino que caminha sozinho por uma estrada de barro pode, um dia, atravessar o mundo — se for guiado pela fé, pelo amor, e pela beleza de um bem-te-vi no céu.

Hoje, compreendo que o crepúsculo ainda me dói. Não por medo da noite — mas porque ele me lembra do menino que, um dia, quis salvar a luz com as mãos. E talvez tenha conseguido.

Como escrevi certa vez em meu Vocabulário das Sombras:

“Hoje estou feito de angústia e fuga,
quem vem a mim não me encontra
eu estou intensamente à minha procura.”

E sigo. À procura de mim, dos crepúsculos perdidos, dos sonhos que me guardaram quando tudo o mais me faltava.

Porque eu sou feito de sonho.
E de memória.
E de voos que começaram no barro.